O Mito do Homem Assassino

por Eric Raymond

Um dos erros mais perigosos de nosso tempo é a crença de que os seres humanos são animais unicamente violentos, escassamente contidos de cometer atrocidades uns aos outros pelas restrições da ética, da religião e do estado.
Pode parecer estranho a alguns contrariar isto dado o fluxo aparentemente incessante de relatos de atrocidades da Bósnia, Somália, Líbano e Los Angeles que nós recebemos diariamente. Mas, na realidade, um pequeno estudo de etologia animal (e alguma aplicação de métodos etológicos no comportamento humano) basta para mostrar à mente imparcial que os seres humanos não são animais especialmente violentos.
Desmond Morris, em seu fascinante livro “Manwatching” por exemplo, mostra que o estilo de luta instintivo dos seres humanos parece estar aperfeiçoado com muito cuidado para nos impedir de ferirmos uns aos outros. Filmes de brigas de rua mostram que a luta “instintiva” consiste em grande parte de empurrões e socos na área da cabeça/ombros/tórax.
É notavelmente difícil ferir seriamente um ser humano deste modo; as áreas-alvo preferidas são principalmente osso, e o estilo instintivo de ataque desenvolve pouca força em comparação com o esforço despendido. É esclarecedor comparar este comportamento desajeitado ao golpe focado em tecidos macios de um artista marcial que (tendo aprendido a anular seu instinto) pode matar facilmente com um só golpe.
Também é um fato, bem conhecido a estrategistas militares, que ao redor de 70% das tropas em sua primeira situação de combate de fogo acabam se encontrando paralisadas, incapazes de atirar com suas armas letais em um inimigo vivo. É preciso treinamento e intensa ressocialização para construir soldados a partir de recrutas novatos. E é um ponto notável, ao qual nós retornaremos depois, que essa socialização tenha que se concentrar em fazer um aprendiz obedecer ordens e se identificar com o grupo. (O major David Pierson do Exército dos EUA escreveu um ensaio iluminador sobre este tópico na edição de junho de 1999 de Military Review).
A violência criminal é fortemente correlacionada com a superpopulação e o stress, condições que qualquer biólogo sabe que podem tornar até mesmo um rato de laboratório louco. Para ver o contraste claramente, compare uma revolta urbana com as respostas posteriores a inundação ou furacões em áreas rurais. Desafiados por um desastre comum, é mais típico dos humanos se unir que o contrário.
Seres humanos individuais, exceto uma pequena minoria de sociopatas e psicopatas, simplesmente não são assassinos naturais. Por que, então, a crença em um vício humano inato é tão entranhada em nossa cultura? E o que esta crença está custando a nós?

As raízes históricas desta convicção não são difíceis de traçar. A história de criação judaico-cristã alega que os seres humanos existem em um estado caído, pecador; e o Gênese narra dois grandes atos de revolta contra Deus, o segundo dos quais é o primeiro assassinato. Caim mata Abel, e nós herdamos a “marca de Caim”, e o mito de Caim — a crença de que no fundo nós somos todos de alguma maneira assassinos.
Até o século XX, o judeo-cristianismo tendeu a se focalizar no primeiro; a maçã da Serpente, popularmente se não teologicamente comparado com a descoberta da sexualidade. Mas à medida que os tabus sexuais perderam sua velha força proibitiva, a “marca de Caim” tornou-se relativamente mais importante na idéia judaico-cristã de “pecado original”. As mesmas igrejas e sinagogas que abençoaram “apenas guerras” em séculos anteriores se tornaram bastiões do pacifismo ideológico.
Mas há uma segunda fonte provavelmente mais importante do homem-como-assassino — o naturismo reacionário de Rousseau e os Românticos pós-Iluminismo. Contrastando a nobreza e tranqüilidade que eles alegavam ver na natureza rural com a evidente sujeira, pobreza e aglomeração nas cidades aumentando rapidamente da Revolução Industrial, eles secularizaram a Decadência do Homem. Como os seus descendentes espirituais fazem ainda hoje, eles negligenciaram o fato de que o urbano pobre tinha votado com os seus próprios pés por unanimidade escapar de uma pobreza rural ainda pior.
O mito Rousseauiano do Homem tecnológico como uma sujeira feia na face da Natureza primitiva tornou-se tão penetrante na cultura Ocidental que tomou o lugar da imagem adversária mais antiga da “Natureza, vermelha de presa e garra” da mente popular. Talvez isto fosse inevitável enquanto os humanos alcançavam cada vez mais controle sobre seu ambiente; proteção da fome, pragas, tempo ruim, predadores e outras inconveniências da natureza encorajou a tenra ilusão de que só a maldade humana torna o mundo um lugar difícil.
Até finais do século XIX e começo do XX, a visão Rousseauiana do homem e da natureza era um luxo limitado aos intelectuais e aos ricos ociosos. Só quando os aumentos em urbanização e riqueza média isolaram a maioria da sociedade da natureza ela se tornou uma crença popular básica não-articulada nem examinada.
Em realidade, a Natureza é uma arena violenta de competição intra- e inter-espécies na qual o assassinato para ganho é um evento cotidiano e flutuações ecológicas conduzem comumente a morte em massa. Sociedades humanas, fora de tempos de guerra, são quase milagrosamente estáveis e não violentas em contraste. Mas é provável que o preconceito inconsciente de até mesmo ocidentais educados de hoje seja o oposto da verdade. A ecologia popular substituiu a teologia popular; o novo mito é o do “homem o macaco assassino”.
Outro tipo mais obscuro de romantismo também está ocorrendo. Para uma pessoa que se sente fundamentalmente impotente, a convicção de que o ser humano é de alguma maneira intrinsecamente fatal pode ser uma ilusão apreciada. Seus divulgadores sabem bem que a fantasia de violência vende não aos realizados, ricos e sábios, mas ao invés disso a trabalhadores presos em empregos sem perspectivas, adolescentes frustrados, aposentados — os marginalizados, solitários e perdidos.
A estas pessoas, o mito do macaco-assassino é uma consolação. Se todo o resto falhar, ele oferece a promessa obscura de um grande final, liberando o assassino mítico interior para expressar todas essas frustrações em uma catarse sangrenta e vingativa. Mas se sete entre dez humanos não podem apertar o gatilho em um inimigo que eles têm toda razão para acreditar que está tentando matá-los, parece improvável que noventa e sete entre cem pudessem ser assassinos.
E, de fato, menos que a metade de um por cento da população humana presente já matou em tempos de paz; assassinatos são mais que uma ordem de magnitude menos comuns que acidentes domésticos fatais. Além disso, todos menos um número muito pequeno de assassinatos são executados por homens entre as idades de 15 e 25, e a imensa maioria desses por homens solteiros. As chances de uma pessoa ser morta por um humano fora dessa faixa demográfica são comparáveis às chances dela ser morta por um raio.
A guerra é a grande exceção, o grande legitimador do assassinato, a arena na qual os humanos comuns se tornam rotineiramente assassinos. A prevalência especial do mito do macaco-assassino em nosso tempo deve algo indubitavelmente ao horror e visibilidade da guerra do século XX.
Campanhas de genocídio e repressões como o Holocausto Nazista, as fomes criadas por Stalin, os massacres Ankha no Cambodja, e a “limpeza étnica” na Iugoslávia figuram ainda mais na mente
popular que a guerra como apoio para o mito do homem assassino. Mas eles não deviam; tais atrocidades são invariavelmente concebidas por pequenas minorias seletas, muitos menores que 0.5% da população.
Nós vimos que em circunstâncias normais, os seres humanos não são assassinos; e que na realidade a maioria tem instintos que fazem com que seja extremamente difícil se empenharem em violência letal. Como nós reconciliamos isto com o padrão recorrente de violência humana na guerra? E, para citar novamente uma de nossas perguntas originais, o que a crença no mito do homem assassino faz para nós?
Nós veremos logo que as respostas para estas duas perguntas estão intimamente relacionadas — porque há um ponto crucial em comum entre guerra e genocídio, um não compartilhado com as letalidades comparativamente desprezíveis de criminosos e os individualmente insanos. Tanto a guerra quanto o genocídio dependem, essencialmente, no hábito de matar sob ordens. Pierson observa, reveladoramente, que atrocidades “são geralmente iniciadas por tipos de personalidade muito auto-controladas em posições de segundos-em-comando, e não por tipos de personalidade sem auto-controle”.
Isto é parte do que Hannah Arendt estava descrevendo quando, depois dos julgamentos de Nuremberg, cunhou sua frase inesquecível “a banalidade do mal”. O instinto que facilitou as atrocidades em Belsen-Bergen e Treblinka e Dachau não era um prazer em praticar assassinatos, mas sim a submissão não crítica às ordens de machos alfa — até mesmo quando essas ordens eram para horror e morte.
Seres humanos são primatas sociais com instintos sociais. Um desses instintos é a docilidade, uma predisposição para obedecer o líder da tribo e outros machos dominantes. Isto era originalmente adaptativo; menos brigas de status significava mais corpos capazes na tribo ou bando de caça. Era especialmente importante que machos solteiros, entre 15 e 25 anos obedecessem ordens até mesmo quando essas ordens envolvessem risco e matança. Estes solteiros eram os caçadores da tribo, guerreiros, exploradores e aqueles que se arriscavam; um bando sobreviveria melhor se eles fossem tanto agressivos para com estranhos de fora quanto amenos ao controle social.
Ao longo da maior parte da história evolutiva humana, o efeito multiplicador da docilidade estava limitado pelo tamanho pequeno (250 ou menos, normalmente muito menos) das unidades sociais humanas. Mas quando um único macho alfa ou um grupo cooperante de machos alfa puderam comandar os machos solteiros agressivos de uma cidade grande ou nação inteira, as regras mudaram. Guerra e genocídio tornaram-se possíveis.
De fato, nem guerra nem genocídio precisam de mais que relativamente um punhado de assassinos — não muito maior que o meio por cento a um por cento que comete violência letal em tempos de paz. Porém, ambos requerem a obediência de uma grande população de apoio. Fábricas têm que trabalhar em hora extra. Caminhões de munição devem ser levados aonde as balas são necessárias. Pessoas têm que concordar em não ver, não ouvir, não notar certas coisas. Ordens devem ser obedecidas.
As experiências descritas no livro de Stanley Milgram de 1974, “Os Perigos da Obediência”, demonstraram como pessoas do contrário éticas poderiam ser induzidas a torturar ativamente outra pessoa pela presença de uma figura de autoridade comandando e legitimando a violência. Elas permanecem entre os resultados mais poderoso e perturbadores da psicologia experimental.
Seres humanos não são assassinos natos; muito, muito poucos aprendem a desfrutar do assassinato ou tortura. Porém, os seres humanos são suficientemente dóceis para que muitos possam ser eventualmente ensinados a matar, apoiar a matança ou consentir a matar sob o comando de um macho alfa, dissociando-se completamente da responsabilidade pelo ato. Nosso pecado original não é nenhuma vontade de assassinar— é a obediência.
E isto nos leva à razão final para a prevalência do mito do homem assassino; que ele encoraja a obediência e legitima o controle social do indivíduo. O homem que vê todos seus vizinhos como assassinos em potencial abdicará de quase qualquer coisa para ser protegido deles. Ele pedirá por uma mão forte de cima; ele se tornará um instrumento disposto na opressão dos seus companheiros. Ele pode até permitir ser transformado ele mesmo em um assassino. A sociedade será atomizada em milhões de fragmentos medrosos, cada um reagindo ao medo de violência individual fantasiada ao patrocinar as condições políticas para uma real violência em grande escala.
Até mesmo quando o medo de violência é menos agudo, o mito do homem assassino serve bem às elites de poder de todos os tipos. Definir o problema central da sociedade como a repressão de uma tendência individual universal para a violência é insinuar uma solução autoritária; é negar sem exame a proposição de que o interesse próprio e cooperação voluntária são suficientes para a ordem civil.
Em suma, o mito do homem assassino degrada e no final das contas enfraquece o indivíduo, e desvia a atenção dos mecanismos sociais e instintos sociais que de fato estão por trás de virtualmente toda violência. Se nós formos todos assassinos inatos, ninguém é responsável; a violência do crime e a muito maior e mais sistemática violência dos governos são tão inevitáveis quanto o sexo.
Por outro lado, se nós reconhecemos que a maioria da violência (e toda a violência em grande escala) surge da obediência, e especialmente da prática de violência agressiva por machos solteiros sob o comando de líderes macho alfas, então nós podemos começar a fazer perguntas mais frutíferas. Como por exemplo: o que nós podemos fazer, culturalmente, para romper esta cadeia causal?
Não há nenhuma esperança a curto prazo de que nós possamos eliminar seja a agressão ou a docilidade do genoma humano. E a violência em pequena escala individual de criminosos e dos insanos é uma mera distração da realidade horrorosa e vasta que é o assassinato e a ameaça de assassinato sancionados pelo governo.
Para focalizar o real problema de um modo efetivo, nós temos portanto que mudar nossas culturas de forma que quaisquer machos alfa que se declarem o ‘governo’ deixem de dar ordens para executarmos agressão, ou que os homens jovens deixem de obedecer essas ordens.

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Um comentário em “O Mito do Homem Assassino

  1. Certamente não nascemos santos, mas nascemos um tanto distantes da visão do Pecado Original. E não custa lembrar: se todos os oprimidos, os marginalizados, os miseráveis, os favelados, fossem naturalmente violentos e assassinos, boa parte do mundo estaria em guerra, e o Rio de Janeiro seria uma região semelhante, ou pior, a Palestina.

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