O Contato de Sagan

por Kentaro Mori, editor CA

Aviso: Este texto falará tanto do filme quanto do livro ‘Contato’ de Carl Sagan. Boas surpresas, boas mesmo, podem ser estragadas se você ainda não leu nem assistiu as obras…

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Contato não é exatamente a representação mais verossímil do primeiro contato da humanidade com uma civilização extraterrestre. Alguns cientistas criticam a história porque ela dá a entender que um primeiro contato com uma civilização alienígena logo seria seguido por um contato físico, onde distâncias de milhares de anos-luz poderiam ser vencidas com relativa facilidade. Essa é uma idéia que pode vir a desapontar, talvez o limite da velocidade luz seja realmente um limite definitivo, ou pelo menos ele é segundo nosso conhecimento presente. ‘Contato’ é entretanto, um romance de ficção científica sofisticado que procura discutir os limites entre a razão e a fé e como a descoberta de que não estamos sozinhos nos afetaria e como ela poderia levar a descobertas ainda mais profundas.
Tanto o livro escrito por Sagan em 1985 como o filme adaptado por Zemeckis em 1997 têm em comum a discussão entre razão e fé, e o filme é razoavelmente fiel à idéia principal do livro. A idéia é a de que a ciência e a razão também podem ser meios através dos quais uma pessoa pode experimentar uma fascinação sobre o Universo que as pessoas geralmente associam exclusivamente à religião e à fé. A forma como essa idéia é tratada porém é a principal diferença entre os dois: no filme, se podemos ter certeza de um contato, ele não foi com os extraterrestres mas sim com este senso de fascinação que leva a personagem central a acreditar em um plano maior no Universo. No livro, nós não só temos certeza de que houve um contato com uma civilização extraterrestre mas, surpresa, entramos em contato direto com Deus – sobre esse contato porém é melhor falar um pouco depois.
O filme pode ser entendido como uma versão toda própria: ao discutir o ceticismo e a crença, nós somos levados ao final a questionar por nós mesmos se acreditamos que houve ou não um contato com alienígenas. O personagem Sol Hadden, o multibilionário e gênio excêntrico, pode ter pregado a maior peça de todos os tempos na humanidade, lançando um satélite secreto que transmite uma mensagem à Terra como se a fonte fosse Vega. Nessa mensagem, Hadden codifica as instruções para construção de uma máquina complexa que parece ser um meio de transporte, mas que ao invés disso simplesmente induz alucinações no único ocupante. As coisas podem ter ocorrido assim, por outro lado os alienígenas sugerem a Ellie Arroway que talvez esta incerteza sobre o contato seja em si uma forma de preparação para um contato mais aberto no futuro. Esta versão cinematográfica é elegante e um raro exemplo de inteligência em Hollywood, ecoando a brincadeira de Orson Welles quando transmitiu uma dramatização de ‘A Guerra dos Mundos’ e também o promissor conceito da preparação de contato. Talvez isto possa perdoar os pequenos clichês típicos como o romance insípido entre Arroway e o revendo Palmer Joss ser elevado a uma trama central (isso pode ser uma analogia às descobertas de Arroway, mas não pareceu funcionar bem), bem como Hadden tornar-se um personagem tão poderoso que talvez pudesse ser chamado de Deus, sendo inclusive aparentemente onisciente.
Já o livro pode se dar ao luxo de estender-se sobre diversos detalhes e criar uma história mais complexa que permite grandes surpresas ao final. Alguns detalhes deliciosos: nós ficamos sabendo que Sol Hadden tornou-se bilionário ao inventar um chip que bloqueia automática e inteligentemente os comerciais de TV, esta tecnologia de chips de ‘reconhecimento de contexto’ logo se torna suficientemente sofisticada a ponto de incomodar os militares pois poderia ser usada para decodificar mensagens secretas. E assim, em uma decisão unilateral o governo militariza e passa a controlar a maior parte deste ramo de negócios de Hadden, o que o deixa amargurado. Os mais paranóicos podem encontrar aqui uma referência de Sagan a como o governo controla e esconde tecnologias revolucionárias do público em nome da ‘segurança nacional’. Posteriormente os chips de Hadden seriam essenciais na decodificação da mensagem alienígena e depois de uma mensagem muito mais curiosa. Mas não é só com o governo que Hadden encontra problemas: obviamente ele encontra muitos inimigos ao abalar a multibilionária indústria da propaganda e a própria mídia comercial, que depende da propaganda para sobreviver. A resposta de Hadden?

"Bem, a ausência de propaganda é uma alternativa (…). Só há enormes verbas de propaganda quando não há diferença entre os produtos. Se os produtos fossem realmente diferentes, as pessoas iriam comprar os que fossem melhores. A propaganda ensina as pessoas a não confiar em seu julgamento. A propaganda ensina as pessoas a ser estúpidas. (…) Os fabricantes poderiam usar parte da verba de propaganda para melhorar seus produtos. O consumidor se beneficiaria. Revistas e jornais e malas diretas se beneficiariam, e isso diminuiria o ônus nas agências de propaganda. Eu não vejo qual é o problema."

Outro detalhe muito interessante de Hadden é sua fixação pela Babilônia. Hadden fez de sua ‘casa’ uma recriação da antiga Babilônia, incluindo os Jardins Suspensos. Isso é relevante porque no livro, Hadden não morre de câncer enquanto a ‘Máquina’ é ativada ou logo depois, pelo contrário ele está muito saudável mas decide partir em uma viagem rumo às estrelas almejando a imortalidade em uma nave chamada ‘Gilgamesh’. A nave lhe permitiria viajar pelo sistema solar até que ele fosse gradualmente congelado pelo frio do espaço e entrasse em uma criogenia natural. Sua esperança era a imortalidade: ele esperava que alguma civilização extraterrestre o capturasse e ressuscitasse. Nem é preciso dizer que imortalidade é uma outra obsessão de Hadden. Aqui, um aspecto que parece curioso é como ‘Sol Hadden’ tem uma sonoridade próxima de ‘Carl Sagan’. Não pretendo dizer que Hadden era Sagan apenas por causa disso, mas talvez haja uma boa dose dos sonhos e especulações mais libertas de Sagan em Hadden.
Por exemplo, um aspecto pouco conhecido de Sagan é que nos anos 60 ele era muito mais aberto a diversas teorias heterodoxas. Mesmo em relação aos OVNIs, Sagan defendia que o tema deveria ser melhor estudado e até simpatizava com a idéia de que alguns OVNIs fossem naves extraterrestres. Em 1966, no livro "Intelligent Life in the Universe" em conjunto com I. S. Shklovskii, Sagan antecede muitos euhemeristas modernos como von Däniken ao falar sobre como o mito sumério de Oannes poderia ser o relato de um contato com seres extraterrestres no passado. Sagan antecede até mesmo Zacharia Sitchin ao falar sobre as tabuletas sumérias incluindo uma famosa onde parece haver a representação do Sol circundado por nove planetas. Anos depois Sagan estaria muito mais cético em relação a naves e contatos extraterrestres, tendo por diversas vezes contestado supostas ‘provas’ apresentadas por ufologistas, mas mesmo assim nunca clamou pelo fim da pesquisa de OVNIs, pelo contrário ele criticou a suposta ciência dos estudos oficiais do governo americano sobre o tema. Gostaria de imaginar que Hadden é uma caricaturização do lado mais sonhador de Sagan.
Sagan demonstra estar bem a par das teorias ufológicas e pseudocientíficas em seu livro, ao citar diversos cenários fictícios das idéias que surgiriam no rastro da chegada da mensagem. Um exemplo disso é que ele cita como algumas pessoas estariam dizendo que os nazista
s teriam criado discos voadores e de alguma forma já teriam chegado a Vega, onde estaria Hitler. O livro é de 1985, enquanto a onda de interesse mais ampla por ‘UFOs nazistas’ mais recente data dos anos 90. Sagan só poderia estar se referindo às teorias mais antigas de ‘UFOs nazistas’ dos anos 50 e 60, que mesmo assim não eram tão conhecidas. Ele não era um ‘cético desinformado’, na verdade o livro ‘Contato’ é uma avalanche de sua cultura eclética, indo da Grécia Antiga ao Japão dos anos 80. Devemos estar agradecidos por Sagan não ter resolvido virar um vendedor de pseudociência, pois as teorias pseudocientíficas que poderia criar deveriam ser altamente contagiantes – anteceder Däniken e Sitchin ainda jovem é uma demonstração do perigo que Sagan poderia ter sido.
Voltando à história, a mensagem chega quando recebemos uma seqüência de números primos. Números primos são ‘números que só podem ser divididos por 1 e por eles mesmos’, e como não concebemos nenhuma forma natural pela qual uma longa seqüência de números primos consecutivos poderiam ser gerados, eles são um bom indicativo de inteligência e artificialidade.
Talvez caiba aqui um pequeno parêntese sobre como a natureza pode entretanto ‘gerar’ alguns números primos. Cigarras têm dois períodos em suas vidas, um estágio ‘juvenil’ e um adulto, marcadamente diferentes. Ocorre que as assim chamadas cigarras periódicas levam isto ao extremo, passando 13 ou 17 anos na fase de ninfas para viver apenas algumas semanas na vida adulta. O interessante é primeiro que não é apenas uma espécie de cigarra periódica que passa 13 anos e outra que passa 17 anos como ninfa. Há três espécies diferentes e cada uma delas tem raças que ficam 13 e outras 17 anos, ou seja, houve uma convergência evolutiva de três espécies diferentes de cigarras periódicas a ciclos de 13 e 17 anos. O segundo aspecto interessante – e muito interessante – é que a única explicação razoável para que sejam 13 e 17 anos, e não 14, 15 ou 16 anos é que 13 e 17 são números primos. Lembrando, números primos são aqueles que só podem ser divididos por eles mesmos (e por 1). Ao ajustar seus ciclos de vida em número primos, as cigarras estariam evitando que outras espécies, como parasitas, possam sincronizar-se a elas. Por exemplo, se as cigarras tivessem um ciclo de 14 anos, parasitas com um ciclo de 7 anos poderiam sincronizar-se às cigarras e prejudicá-las em todo ciclo. (Este exemplo foi largamente copiado de ‘O Relojoeiro Cego’ De Richard Dawkins).
Mesmo que a natureza possa gerar alguns números primos – no caso em particular, dois consecutivos limitados talvez pela faixa de flexibilidade das cigarras periódicas, talvez 11 e 23 sejam períodos muito longe de 13 e 17 – uma longa seqüência de números primos deve certamente provir de uma inteligência. Já é difícil imaginar uma fonte periódica natural de pulsos de rádio, embora elas existam, mas uma fonte natural de uma longa série de números primos é algo um tanto improvável, ou pelo menos desconhecido de nossa ciência.
Em ‘Contato’, dentro dos números primos é achado um pequeno trecho de filme, que em um brilhante artifício de ficção de Sagan acaba sendo a imagem de Hitler na abertura dos jogos olímpicos de 1936. Algumas pessoas criticaram Sagan por expor Hitler como nosso embaixador cósmico, mas sabemos que uma das bandeiras de Sagan era que a qualidade de nossa televisão é péssima – o que o levou a criar em contrapartida a série de estrondoso sucesso Cosmos. Fazer de Hitler nosso embaixador seria uma lembrança de que nossas transmissões de TV jorrando para o espaço devem ser um pouco melhores. No livro, os extraterrestres contam como a transmissão de Hitler os deixou preocupados em relação a nós, mas que eles enxergaram esperança para nossa raça em aspectos como a música de Beethoven tocada nas transmissões.
Finalmente, é encontrada uma série de páginas codificadas que parecem ser instruções para construção de uma máquina, já que desenhos esquemáticos estão incluídos. Tanto no filme quanto no livro, a decodificação vai bem até que é encontrada uma dificuldade, que é solucionada por uma sugestão de Hadden, o gênio… o filme até que é inovador ao sugerir que a solução para ‘encaixar’ as páginas é fazer isso de forma tridimensional, e não bidimensional. É claro, cientistas de verdade deveriam solucionar um problema assim rapidamente e a solução de Hadden no livro é olhar para a polarização do sinal, mas em um filme é uma boa idéia.
A ‘Máquina’ codificada na mensagem é uma cápsula em forma de dodecaedro envolta por todo um grande aparelho circundante. No filme, a cápsula foi um pouco alterada, e é uma esfera envolta por uma estrutura de dodecaedro, isso pode ser porque no livro o dodecaedro acomoda cinco viajantes (o dodecaedro é composto de pentágonos) enquanto no filme há espaço para apenas um (daí, talvez, porque é uma esfera). O aparelho circundante seria um sistema para gerar condições que permitiriam a formação de uma abertura de um buraco de minhoca. Como é explicado, a grande Máquina que leva anos e trilhões de dólares para ser construída apenas cria uma abertura. Quem cria o buraco de minhoca para conectar-se a essa abertura, e portanto faz a maior parte do trabalho, são os extraterrestres. Mesmo que a Máquina fosse ativada, se os extraterrestres não ligassem a abertura criada ao sistema deles ela não levaria a lugar algum.
A idéia de utilizar buracos de minhoca para vencer grandes distâncias foi uma idéia primeiramente exposta exatamente pelo livro ‘Contato’. Inicialmente Sagan iria fazer com que a cápsula viajasse por um buraco negro – um pouco à moda das teorias pseudocientíficas a respeito do ‘triângulo das Bermudas’ – mas ao consultar o físico Kip Thorne este sugeriu que um buraco de minhoca faria o mesmo trabalho sem as inconveniências de um buraco negro. ‘Contato’ não marcou apenas a reintrodução séria da idéia vencer grandes distâncias instantaneamente, mas também em seu rastro a idéia de viagem no tempo já que buracos de minhoca, se viáveis, poderiam também permitir viagens no tempo.
Sagan é muito criativo e perspicaz ao dar a forma de um dodecaedro à cápsula que viajará pelo Universo, e isso ecoa sua discussão na série Cosmos da perfeição geométrica do dodecaedro. Os ufologistas discutem como o disco e a esfera, ou o triângulo, os charutos e os cones seriam formas geométricas simples, elegantes e perfeitas para naves extraterrestres, mas isso porque não imaginam que se os extraterrestres quisessem demonstrar perfeição geométrica, poderiam construir suas naves como poliedros regulares. Como aprendemos no colegial (ou ensino médio), só existem cinco: o tetraedro, o octaedro, o cubo, o icosaedro e o dodecaedro. O tetraedro, octaedro e icosaedro são compostos de triângulos, o cubo é bem, composto de quadrados e o dodecaedro de pentágonos. Embora nós todos aprendamos no colegial que só existem cinco sólidos regulares e a demonstração matemática disto, os assim chamados sólidos platônicos não eram de conhecimento de todas civilizações. É provavelmente preciso conhecer um pouco de geometria para conhecer todos os cinco sólidos regulares e saber que eles são todos que existem. Os gregos conheciam os cinco, mas os pitagóricos consideravam o dodecaedro um conhecimento secreto. Cada um dos quatro sólidos regulares era associado a um elemento natural, e o quinto, o dodecaedro foi tido como um conhecimento místico que só poderia ser associado ao Cosmo, à própria quintessência. Os pitagóricos já consideravam o número cinco sagrado, e um quinto sólido regular composto de doze pentágonos deve ter sido demais para eles. O conhecimento do dodecaedro era então para ser guardado como um segredo, algo como a descoberta dos números irracionais que demoliam sua noção de q
ue o Universo podia ser reduzido a uma perfeição de números inteiros.
No livro, o dodecaedro com cinco viajantes é levado da Máquina a diversos buracos de minhoca espalhados por toda Galáxia, saindo de um buraco de minhoca localizado perto de um sistema estelar estéril apenas para ser logo sugado por outro buraco rumo a outro sistema estelar. Os viajantes logo concluem que estão em uma espécie de metrô galáctico, e como sua cápsula não lhes permite ‘descer’ à vontade, eles estão indo rumo ao ‘ponto final’. E o ponto final não é nada menos que o centro da Galáxia, a ‘Estação Central’. Lá eles podem ver milhares de estações de atracamento, cada uma com uma forma geométrica diferente, presume-se para as diversas formas geométricas de naves interestelares.
Tanto no livro como no filme, a saída para evitar mostrar alienígenas humanóides é simplesmente não mostrá-los. Piadas seriam feitas sobre o alienígena ser o pai de Ellie Arroway, mas os alienígenas aparecerem como pessoas familiares e queridas é um bom recurso para um primeiro contato. Isso requer que os alienígenas vasculhem nossa mente e entendam alguns aspectos básicos de nosso funcionamento para poderem se comunicar conosco, mas se os alienígenas puderem fazer isso esta é certamente uma forma não-traumatizante de primeiro contato para a civilização tecnicamente inferior. É claro que a premissa básica é que os alienígenas entendem o que são sentimentos e de fato eles se maravilhariam com nossa ‘capacidade de sonhar’. Pode ser curioso notar como os alienígenas de Sagan fazem basicamente as mesmas coisas que os alienígenas da ufologia, mas de forma muito mais avançada. Eles vasculham nossas mentes mas quase sem que percebamos. Com o conhecimento que adquirem de nossas mentes, elaboram uma forma totalmente não-traumatizante de apresentação e comunicação. A diferença dos alienígenas de Sagan é que eles estão interessados em nossos sonhos – se bem que isso também não lhes é vital, apenas interessante, enquanto os grays de nossa ufologia estariam interessados em nossos genes – se bem que ao invés de simplesmente colher amostras de DNA ficam enfiando coisas em narizes, abdomens e ânus. Talvez eles estejam interessados em nossas perversões… ou talvez isso seja um comentário malicioso demais.
No ponto decisivo onde os alienígenas falam é que há grandes diferenças entre o livro e o filme, aliás, a Grande Diferença. Os alienígenas contam que o sistema de transporte de buracos de minhoca não foi construído por eles, apenas achado pronto e abandonado. É óbvio que o sistema não surgiu naturalmente, alguém o construiu por toda Galáxia, e eles descobrem, em todas as galáxias do Universo. Isso é contado em ambas versões, mas no livro, sabemos um pouco mais. Os alienígenas estariam realizando um grande projeto para impedir o que é o destino inevitável do Universo, a morte térmica. Este seria o grande projeto da Galáxia em andamento. Finalmente, eles contam que há mensagens ainda não compreendidas nem mesmo por eles codificadas dentro de números transcendentais como o pi.
De volta à Terra, os viajantes estão ansiosos para contar sua viagem mas infelizmente não têm nenhuma prova de que realmente viajaram para o centro da Galáxia. Várias pistas são dadas de que isto é intencional por parte dos alienígenas, uma espécie de preparação de um contato mais aberto no futuro. As pessoas não terão certeza de que um contato ocorreu, mas a idéia estará presente e quando elas tiverem certeza estarão mais preparadas para lidar com a idéia. No livro, em verdade a própria viagem da Máquina no Japão foi feita em segredo, e seu subseqüente fracasso – ou assim se acredita – foi comunicado à população mas não as "alucinações" dos viajantes. Há então um encobrimento governamental, e os ufologistas podem cogitar que Sagan estaria fazendo alusão velada aos OVNIs serem uma forma de preparação de contato. No filme, entretanto, as ‘alucinações’ e a investigação da máquina são públicas, em pleno Congresso Americano. O filme acaba aqui, e nós ficamos nos perguntando se um contato realmente ocorreu.
No livro entretanto, os alienígenas contam sobre seu projeto de reverter a entropia e sobre a mensagem estranha dentro do pi, o que não é uma prova de contato mas se comprovado pode ser. Em um final surpreendente, a protagonista Ellie Arroway usa o mesmo computador com chips de Hadden que decodificou a mensagem de Vega para calcular o valor do pi a milhares de casas decimais até que os números até então aleatórios apresentam uma longa série de uns e zeros. Traçados em uma tabela quadrada, eles formam um círculo. Dentro do valor que define a razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo, estaria codificado um círculo. Isso não pode ser natural, e o criador dessa mensagem deve ter mexido com a própria estrutura do Universo para colocar esta mensagem no pi. Esta é uma mensagem de alguém que criou o Universo.
Há longas discussões em um livro sobre a fé e a razão sobre o que seria uma prova inequívoca de que Deus existe. Os religiosos falam sobre como essas provas abundam na Bíblia, mas a determinada agnóstica Arroway argumenta em uma fala inesquecível:

"Se Deus quisesse nos mandar uma mensagem e escrituras antigas fossem a única forma que pudesse imaginar, ele poderia ter feito um trabalho melhor. E ele dificilmente teria que se confinar a escrituras. Por que não há um monstruoso crucifixo orbitando a Terra? Por que a superfície da Lua não é coberta com os Dez Mandamentos? Por que Deus deveria ser tão claro na Bíblia e tão obscuro no mundo?"

Os ufologistas podem se entreter ao imaginar como as provas de visitas extraterrestres antigas também são incertas. Por que não há uma nave gigante desenterrada por aí? Digo, uma verdadeira e inconfundível nave gigante extraterrestre? Naves interestelares devem ser capazes de suportar milhões de anos sob as intempéries terrestres, brandas se comparadas ao que uma exposição prolongada a raios cósmicos pode fazer a sistemas delicados. Bem, quem sabe essas naves alienígenas que ficam caindo à toda hora pelo mundo não sejam tão robustas e os extraterrestres que chegam à Terra estão descontando em nós a péssima viagem que fizeram pela Galáxia – imagine atravessar o continente americano de ponta a ponta em um Fusca, talvez você também quisesse enfiar coisas nas pessoas que visse pela frente…
‘Contato’ fornece um fascinante exemplo do que seria uma prova de que o Universo foi criado por alguém. Haveria uma mensagem codificada na própria estrutura do Universo. Essa idéia é ecoada nas teorias de criação de Universos bebês em laboratório. Nós poderíamos criar Universos dentro de um laboratório, mas uma vez que os criemos, infelizmente não poderíamos nos comunicar com eles. O físico Andrei Linde sugeriu que existiria uma forma viável de comunicação com os seres que surgirem nesse Universo-bebê: podemos codificar informações na própria estrutura deste Universo-bebê. Desta forma, ao descobrir leis físicas e as relações entre elas, bem como relações matemáticas intrínsecas, os habitantes desse Universo estariam descobrindo mensagens que nós deixamos para eles. Talvez, e essa é a perspectiva tantalizante, nós já estejamos vivendo em um Universo criado com mensagens codificadas em sua estrutura pelo seu Criador – que muitos podem chamar de Deus.
Obviamente, o pi conter uma mensagem divina é ficção, não sabemos se há o desenho de um círculo codificado por Deus dentro do pi. Em um recente artigo publicado na Nature matemáticos apontam que o pi provavelmente contém a mesma quantidade de todos os números, e conteria assim quaisquer mensagens que possamos imaginar, o que significa que não há realmente nenhuma mensagem n
o pi em qualquer lugar. Mesmo assim, é uma pena que o filme tenha ignorado a parte sobre a descoberta de Deus. Talvez fosse algo estranho e polêmico demais para um filme de Hollywood, um Deus que fala inequivocamente através da matemática intrínseca ao nosso Universo deve ser uma blasfêmia para muitos religiosos, para eles um Deus que fala de forma incerta através de palavras em diferentes línguas que são transcritas e traduzidas com erros por sua vez interpretados das mais diversas formas é muito mais sagrado. Talvez um Deus matemático criador do Universo fosse demais até para céticos. Sagan era um agnóstico, uma pessoa que esperava evidências concretas de Deus, ele não era ateísta.
É uma pena porque ‘Contato’ realmente expressa a idéia de que se um dia descobrirmos que a resposta da pergunta ‘Estamos sozinhos?’ é um sonoro ‘Não’, poderemos obter de quebra respostas ou pistas promissoras para a ancestral pergunta "Por que estamos aqui?".

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7 comentários sobre “O Contato de Sagan

  1. Olha, Kentaro, vejo muita gente te detonando porque é cético, mas se todo cabra que se diz ateu/materialista/whatever fosse que nem você e debatesse as idéias dessa forma, o mundo tava feito! Um ótimo texto!

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