Socorro, existe um monstro na minha garagem!

Marcelo Druyan [@]

1ª parte – quem vai tirar o monstro da minha garagem?

A realidade da criança se constrói de uma maneira pitoresca. Ela vive a experiência, na linguagem, reformula esta experiência no suceder da linguagem e constrói uma proposição explicativa da experiência, que é a sua realidade, a realidade da criança. E a realidade da criança muda a cada instante, à medida que ela cresce. De uma realidade onde monstros e bruxas assustam; fadas e duendes encantam, ela chega a uma realidade na qual monstros, bruxas, fadas e duendes deixaram de existir.

Esta mudança acontece porque a criança, à medida que cresce, reformula continuamente suas explicações da experiência e reconstrói, sem cessar, a sua realidade. Quando a criança, no suceder da linguagem, explica a si mesma que monstros podem não existir; ela desconfia que a sombra assustadora na parede do quarto, à noite, pode não ser um monstro. E quando, finalmente, ela aceita a explicação de que monstros não existem, a sombra na parede já não assusta mais, pois ela reconstruiu sua realidade como uma realidade onde monstros não existem.

Quem é pai, ou mãe, já deve ter reparado como é inútil, em certo grau, explicarmos ao nosso filho de quatro anos, que monstros não existem. Eles podem até aceitar, num primeiro momento, a nossa explicação. Mas quando vêem uma sombra na parede do quarto, à noite, saem correndo para a nossa cama. E aí nos damos conta do quanto independe de nós, em igual grau, a constituição da realidade da criança.

Mas a criança só torna-se capaz de explicar a si mesma que monstros não existem, quando, ao reformular sua experiência, na linguagem, ela testa a validade de nossa velha explicação de que monstros não existem. E no suceder da linguagem, no suceder de novas explicações da experiência, ela valida nossa explicação. Todavia, se não houvesse uma explicação "monstros não existem", a explicação "monstros existem" duraria para sempre.

Mas como, felizmente, existe a explicação "monstros não existem", reformulamos nossa realidade de criança e, graças a isso, hoje saímos para o trabalho sem correr o risco de gritar para os vizinhos: socorro, tem um monstro na minha garagem!

2ª parte – uma arma de mentira mata um monstro de verdade?

O que valida uma proposição explicativa da experiência, ou seja, uma realidade constitutiva, não é qualquer suposto valor intrínseco que esta realidade possa ter. Uma realidade constitutiva não é válida por si mesma, mas é o observador quem a valida, ao aceitar as explicações que ela oferece. Quando um observador explica "Deus não existe", esta realidade (na qual Deus não existe) só é válida para aqueles que aceitam a explicação do observador. Por mais que o observador que explica se desdobre em esforços, se o observador que escuta não aceitar sua explicação, a realidade do observador que explica não será válida para o observador que escuta. Isso acontece porque os critérios de validação de explicações e os critérios de aceitação de explicações dos observadores não são os mesmos.
Uma realidade, para ser objetiva, i.e., válida para todos, teria que ser aceita por todos. Entretanto, realidades constitutivas, apesar de alternativas em relação ao observador que escolhe, podem ser excludentes entre si, em relação ao observador que explica. Em outras palavras, existem realidades que, se confrontadas na linguagem, excluem-se mutuamente. São estruturalmente antinômicas e, por isso, geram domínios cognitivos compostos de explicações que, confrontadas, representam antinomias. Isso significa que é logicamente impossível criar uma interseção de todas as proposições explicativas da experiência, uma fusão a frio de realidades antinômicas. Portanto, é impossível constituirmos uma realidade que seja válida para todos. É impossível, para um observador, aceitar como válida, ao mesmo tempo, a explicação "deus existe" e a explicação "deus não existe".

Então eu digo que não existe, e não é possível existir, uma realidade objetiva. Mas quando digo isso, não quero que ninguém escute, nas entrelinhas, que eu disse não existir universalidade nas explicações cientificas. Objetividade e universalidade não são a mesma coisa. A objetividade refere-se à aceitação de uma realidade como válida para todos. A universalidade fala de uma interseção de domínios cognitivos.

3ª parte – uma arma de verdade mata um monstro de mentira?

Realidades constitutivas têm o mesmo valor ontológico, mas os domínios cognitivos que elas criam podem não responder da mesma maneira quando analisados por um critério arbitrado por um observador. O domínio cognitivo da ciência abrange uma infinidade de explicações validadas pela realidade do cientista. Estas explicações podem ser testadas, por exemplo, pelo critério da funcionalidade (entendido aqui como o parâmetro que determina o grau de utilidade, uso ou serventia da explicação). Da mesma forma, o domínio cognitivo da religião abrange uma infinidade de explicações que também podem ser testados pelo critério da funcionalidade.

Então, se um pastor alega que orações curam dor de cabeça e um médico alega que aspirinas curam dor de cabeça, é possível testarmos estas alegações, estas explicações particulares, utilizando-se o critério da funcionalidade. Basta fazermos experiências controladas pela lógica e pela matemática, para obtermos uma resposta.

Considerando-se que nenhuma explicação foi considerada não conclusiva (hipótese nula), a resposta do experimento pode ser, por princípio, tanto favorável, quanto desfavorável a uma ou às duas explicações; e pode, também por princípio, determinar um empate técnico. O resultado da experiência, também por princípio, implica três desdobramento desejáveis: o domínio cognitivo da explicação que falhou deve ser revisto (no caso de só uma falhar); o domínio cognitivo de ambas as explicações devem ser revistos (no caso de ambas falharem); o domínio cognitivo de ambas devem ser conservados (no caso de ambas não falharem).
Em nosso dia a dia, deparamo-nos freqüentemente com situações como esta. Médico alopata ou homeopata? Cirurgia médica ou cirurgia espiritual? Ginástica ou meditação? Aspirina ou reza? Qual arma usar? Qual monstro matar?

Os cientistas, em sua realidade de cientistas, formulam explicações científicas que, reunidas, formam um domínio cognitivo chamado ciência. Os não cientistas, por sua vez, em sua realidade de não cientistas, também formulam explicações não científicas, que, reunidas, formam um domínio cognitivo chamado senso comum. Em ambos os domínios existe uma série de explicações disponíveis para "download".

Mas historicamente falando, os não cientistas começaram a aceitar as explicações dos cientistas, criando uma extensão no domínio do senso comum e uma interseção entre o domínio do senso comum e o domínio da ciência. No início, tanto a extensão quanto a interseção eram pequenas e tímidas. Atualmente, ambas são grandes e corajosas.

Esta interseção de domínios entre a ciência e o senso comum permitiu a experiência tecnológica e as aplicações decorrentes da tecnologia. Graças a esta interseção, cientistas puderam inventar coisas que podem ser testadas quanto à sua utilidade e podem ser aceitas por cientistas e não cientistas. Graças a esta interseção é que podemos falar da universalidade da ciência e da tecnologia.

A universalidade explica que, do ponto de vista do domínio das ontologias, houve um encontro de realidades constitutivas, marcado pela coincidência de algumas de suas expli
cações e pela interseção de alguns de seus domínios cognitivos. A universalidade do domínio cognitivo da ciência não conflita, portanto, com a ontologia constitutiva da realidade do cientista. A universalidade do domínio cognitivo da ciência baseia-se na verificação de que suas explicações, quando testadas sob a forma de aplicações práticas e validadas como forma de resolver problemas, promovem a interseção do domínio cognitivo da ciência com outros domínios cognitivos.

Se você olhar ao redor, perceberá que a maioria das coisas úteis que o cercam foram inventadas por cientistas: o computador, a impressora, o papel da impressora, o aparelho de som, a lâmpada no teto, o interruptor na parede e até o relógio no seu pulso. Se você olhar de novo e procurar por coisas úteis inventadas por padres (na condição de religiosos) o que vai encontrar? Se encontrar algo, envie-me um e-mail através da rede de computadores inventada por cientistas.

4ª parte – uma arma de mentira mata um monstro de mentira; uma arma de verdade mata um monstro de verdade

Você pode não acreditar que um relógio de pulso é capaz de marcar as horas, você pode até, e por isso, não aceitar usar um relógio, mas quando você usar um relógio, ele vai marcar as horas como qualquer outro relógio.

Você pode acreditar que sabe voar, você pode até, e por isso, querer voar, mas se você saltar do alto de um edifício para voar, vai se espatifar no chão.
No Brasil, no Japão ou em Camarões, a queda dos corpos acontece do mesmo jeito, independente da realidade do observador. A explicação desta experiência, na realidade do cientista, chama-se Lei da Gravidade. Se um médico brasileiro, um monge budista ou um jogador da seleção de futebol de Camarões pularem de uma janela, todos cairão no chão, independente de aceitarem ou não a explicação da ciência.

No Brasil, no Japão ou em Camarões, a explicação cientifica "princípios da aerodinâmica" é satisfatória e suficiente para qualquer observador que os aplique na experiência. Se um médico camaronês, um padre católico ou um jogador da seleção de futebol do Japão aceitarem esta explicação como válida, pularão da mesma janela, com pára-quedas, e todos pousarão suavemente no chão.

Portanto, eu digo que se a ciência não é o instrumento perfeito para gerar explicações satisfatórias e suficientes da experiência, ela é, com certeza, o melhor instrumento que dispomos no momento.

E mais, graças ao uso ético das explicações da ciência e das aplicações da tecnologia, podemos lutar contra o uso imoral das explicações da ciência e das aplicações da tecnologia, contra o abuso das religiões e das filosofias que escravizam o homem e a favor de um mundo livre do medo, da submissão, da ignorância e da superstição. Graças ao uso ético das explicações da ciência e das aplicações da tecnologia, podemos lutar por liberdade e justiça social, sem a obrigação de trocarmos um Senhor na Terra por um Senhor do Céu; sem a submissão a quaisquer Senhores.

A favor da ciência eu devo dizer que o desejo de explicar é o mais nobre de todos. Que, a bem da lógica e do bom senso, não existe conhecimento científico, mas explicações científicas. Que não existe um ser sapiente, passivo de saberes; mas um ser linguajante, ativo em explicares. E que, por fim, a ciência é um verso dito em meio ao silêncio, num mundo assombrado pela gritaria dos demônios.

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