As falhas de discriminação

Sergio Navega, excerto do capítulo 7 de
"Pensamento Crítico e Argumentação Sólida"
Reprodução gentilmente autorizada

Pensamento Crítico e Argumentação SólidaO pensador crítico é aquele que sabe avaliar as coisas. Sabe distinguir e separar noções. Muitas falácias e diversas falhas de raciocínio podem ser creditadas a discriminações inadequadas. Vamos ver algumas delas.

Falha em distinguir a idéia da pessoa
Quando alguém confunde atacar uma idéia com atacar a pessoa que a propôs, surge o Ad Hominem. Nesse caso, é importante reparar que o foco de atenção deve ser sobre o argumento e suas premissas, e não sobre o caráter ou qualquer outra característica da pessoa que o propôs. Observe que no decorrer deste livro critiquei o trabalho de diversos autores, sendo que ocasionalmente fui até mesmo duro nes­sas críticas. Mas em nenhum momento critiquei os autores em si, apenas suas idéias. Nem sem­pre isto é bem recebido e é comum receber uma acusação raivo­sa por se estar fazendo isso. [crítica] Em outros casos, pode ocor­rer um efeito diferente: considera-se correto um argumento não baseado em suas premissas, mas sim em quem as proferiu.

Este é o caso da falácia Apelo à Autoridade, na qual se pode usar a opinião de alguém notável, mas sem especialidade no assunto em questão, como motivo para se acreditar em uma argumentação.

crítica
Algumas pessoas podem ficar melindradas e ofendidas quando suas idéias são criticadas. É freqüente que essas pessoas partam, a partir disso, para a ofensa pessoal, pois pensam que se alguém criticou a sua idéia, está criticando a ela, pessoa. Confundem a pessoa com suas idéias. Isto está errado. Se fosse o contrário C ou seja, se não pudéssemos criticar as idéias, porque estaríamos ofendendo a pessoa C, então nenhuma idéia poderia ser criticada, já que todas as idéias partem necessariamente de alguma pessoa. Assim, não haveria pensamento crítico e como conseqüência, ninguém se preocuparia em discordar e apontar eventuais falhas no pensamento dos outros. Ficaríamos todos nós trancados em nossa ignorância solitária. O ser humano não cresceria através do debate e C exagerando um pouquinho C estaríamos todos caçando javalis com arco e flecha.

Distinção entre afirmação e evidência
É freqüente a confusão entre uma afirmação ou opinião e uma evidência (fato). Para sustentar argumentos, precisamos usar evidências, e não afirmações ou opiniões. Afirma­ções devem ser usa­das no máximo co­mo conjecturas tem­porárias para de­monstração de um ponto secundário [absurdo], mas não como o prin­cipal apoio de um argumento que propomos como sólido. Uma outra falha de distinção típica ocorre quando se confunde explicação plausível com evidência. A simples existência de uma possível explicação não é uma evidência sólida o suficiente para apoiar um argumento, a não ser que essa explicação seja inquestionável ou altamente provável.

Distinção entre familiaridade e validade
Existe uma tendência em se considerar coisas familiares como verdadeiras e coisas desconhecidas C ou novas C como falsas. Nada disto é justificável por si só. A falácia do Apelo à Tradição se utiliza muito destas noções erradas. É interessante que o oposto também é falacioso: o Apelo ao Novo comete este erro de distinção às avessas, ao achar que aquilo que é novo é automaticamente melhor do que aquilo que é velho (já vimos algo sobre isto no Capítulo 4).

absurdo
Uma afirmação sem sustentação em evidências tem um uso justificável quando estamos tentando montar uma demonstração por redução ao absurdo. Neste caso, supomos que a afirmação seja verdadeira e dela concluímos C através de um raciocínio logicamente válido C alguma coisa que possa ser rapidamente vista como absurda. Isto colocará em dúvida as premissas C e particularmente a afirmação que se fez C, de forma a desacreditá-la.

Distinção entre freqüentemente e sempre
Uma premissa que afirme que uma coisa ocorre freqüentemente, não pode ser entendida como dizendo que essa coisa ocorre sempre. Essa confusão irá permitir a montagem de argumentos inválidos, que usem proposições categóricas muito mais fortes do que suas premissas garantem. Da mesma forma, não se pode confundir raro com nunca. Uma situação pode ser rara mas isto não implica que o evento nunca possa acontecer.

Distinção entre crença e verdade
Uma crença é uma proposição que temos em nossa mente, em geral de forma não justificada. Tomada de forma isolada, essa crença não pode ser interpretada como sendo uma “verdade”. É, quando muito, uma suspeita, uma hipótese, algo com o qual podemos iniciar nosso processo de investiga­ção. Suponha, por exemplo, que você tenha entrado no prédio onde trabalha de manhã cedo. Ao entrar, você viu que as nuvens no céu estavam “carrega­das” e cinzas. Você se lembrará de que ontem foi a mesma coisa, e choveu. É natural que conjecture que hoje também possa chover durante o dia. Se não houver janelas em seu escritório, você ficará com uma crença em sua mente de que pode ter chovido. Assim, logo antes de sair para o almoço, você terá a crença de que choveu, mas não terá uma “verdade”. Ao sair, se vir a calçada em frente ao seu edifício toda molhada, poderá reforçar sua idéia de que choveu. Mas ainda assim, não é certeza, pois alguém pode ter lavado a calçada. Ao ver carros estacionados na rua com os vidros molhados, terá nova evidência de que pode ter chovido, aumentando sua cren­ça. Dessa forma, a força daquilo que mantemos como hipótese em nossa mente depende essencialmente dessas evidências externas, e não daquilo que achamos que pode ter ocorrido.

Distinção entre inexplicado e inexplicável
Esta é para os místicos: se um fenômeno ainda não foi explicado pela ciência, não dá para assumir que ele é inexplicável e, portanto, pertencente a uma “outra realida­de” que não aquela com a qual lidamos diariamente. Assim, se você presenciar um “guru” ou um “místico” qualquer fazendo algo que você não tem a me­nor idéia de como é feito C por exem­plo, entortando co­lheres “com o poder da mente” ou coisas do gênero C, o sim­ples fato de você se espantar e de não dispor de nenhuma explicação de como aquilo foi feito não é suficiente para achar que aquela pessoa é realmente “poderosa”. Bons mágicos vivem exatamente de fazer truques inacreditáveis. [truques]

 

truques
Na realidade, a grande maioria desses truques de salão C como entortar colheres, adivinhar cartas selecionadas ao acaso de um maço, reproduzir desenhos dentro de envelopes lacrados, verter perfume das mãos, etc. C são tradicionalmente executados por mágicos e ilusionistas há muito tempo. Mas pelo fato de os mágicos serem reticentes em revelar que truques usam C afinal, isto afetaria o seu desempenho profissional C, esses truques podem e são costumeiramente empregados por engana¬dores para proveito próprio, quando afirmam possuir "poderes paranormais". A diferença entre um desses enganadores e um mágico profissional é que este último é claro em dizer que é apenas um truque e que sua intenção é puramente o entretenimento. Já os enganado¬res afirmam possuir esses "poderes" que os colocam em uma "categoria especial". Realmente, são de uma categoria especial: a dos enganadores e manipuladores.

Outras características do pensador crítico

Depois de ver as falhas típicas de discriminação, vamos ver agora uma série de características que são úteis ao pensamento crítico.

Mente aberta, mas nem tanto
O pensador crítico precisa ter mente aberta. Precisa ser capaz de ouvir e ponderar os argumentos de quem lhe dirige a palavra. Precisa ser caridoso com as propostas dos outros, ouvindo-as com atenção e interpretando-as da melhor forma possível. Mas isso tudo não deve atravessar a linha do bom-senso, aquela a partir da qual começa-se a tomar afirmações, opiniões e crenças como legítimas representantes de evidências e fatos. Considerar caridosamente os argumentos dos oponentes pode requerer nossa temporária adesão às premissas que eles oferecem, para constatarmos a validade lógica do que propõem. Mas isto não deve impedir, logo em seguida, nossa análise crítica e imparcial dessas premissas. Talvez esta frase consiga capturar um pouco mais a idéia central desse assunto:

“Eu nunca me proporia a morrer por minhas crenças, pois posso estar errado”
Bertrand Russell

Disposição para avaliar todas as evidências
O pensador crítico não pode se restringir à análise de apenas algumas evidências acerca de um assunto qualquer. Ele precisa ter interesse por todas elas, em especial por aquelas que tenham potencial de refutar as suas próprias crenças e hipóteses. A decisão final será tão boa quanto nossa imparcialidade em saber aferir não apenas as evidências que suportam nossas idéias e crenças, mas também aquelas que não suportam. Para isso, é necessário contar com disposição para questionar nossas próprias premissas. E isto implica também em suspender o julgamento sobre aquilo que temos em mãos caso constatemos não haver evidências suficientes. A simples suspensão de julgamento, entretanto, não é o final da história: ela somente aponta para que direção devemos caminhar para providenciar as informações de que necessitamos. Também relacionado a este tópico está a idéia de evidências neutras, ou seja, aquelas que são consistentes com nossa conclusão, mas também consistentes com o oposto do que concluímos. Neste caso, não devemos usá-las para aumentar nossa crença em nossa conclusão. Como exemplo, imagine que você esteja atuando como consultor para discutir o posicionamento de seu país em relação a uma disputa comercial internacional. Chega a você a informação de que o outro país ofereceu uma pequena concessão na disputa. Essa concessão é tal que pode ser interpretada tanto como uma intenção de colaboração quanto como uma forma de sedução consistente com uma futura traição. Essa evidência, portanto, não pode ser interpretada como significativa para a idéia de que o outro país está cedendo, pois ela pode ser usada como apoio para ambos os lados da questão.

Considerar explicações alternativas
Quando temos algum evento misterioso e desconhecido à nossa frente, fica sedutor postularmos uma hipótese “esotérica” para explicá-lo. Se nos deixarmos levar pelo que parece ser mais interessante no momento, poderemos ficar à mercê do chamado pensamento esperançoso (wishful thinking). O pensador crítico não deve se contentar em achar uma explicação plausível. A busca de outras hipóteses mais coerentes C embora, talvez, menos interessantes C pode nos fazer ver o evento dentro de um contexto mais racional. Como exemplo, é freqüente ficarmos alarmados com as predições de escassez de combustível fóssil. Há algum tempo, algumas predições catastrofistas diziam que o petróleo não iria durar mais do que a primeira década do Século XXI. Essas predições precisam ser analisadas de forma racional. É inquestionável que as reservas de petróleo são finitas. Mas há um fator novo, que decorre de nossa habilidade de extração e potenciali­zação de energia proveniente desse tipo de recurso natural. Essa habilidade tem crescido muito ultimamente, devido, essencialmente, ao nosso maior conhecimento tecnológico. Assim, embora estejamos certamente consumin­do muito petróleo, nossa capacidade de extração de energia do petróleo tem compensado, e em alguns casos, até mesmo superado, o ritmo de decréscimo desse recurso.

Reavaliar conclusões em face de novas evidências
Quando novos fatos e evidências são trazidos a nossa frente, existe uma tentação grande em distorcermos a interpretação dos fatos para que eles caibam dentro da teoria que temos cultivado. Ao pensar criticamente, devemos avaliar até que ponto este procedimento não está escondendo um outro lado da questão: podemos estar errados. Hipóteses que refutem nossas idéias originais têm que ser investigadas com racionalidade e isenção. Em outras palavras, aceite mudar de opinião quando necessário. Mudar de idéia, nesses casos, não é sinal de fraqueza, mas sim demonstração de que você está interessado em se aproximar da verdade, e não de “estar certo o tempo todo”.

Considerar os críticos da idéia
Praticamente toda idéia colocada por uma pessoa tem um outro grupo de pessoas que pensam de forma exatamente oposta. É extremamente difícil encontrar questões que sejam universalmente encaradas da mesma forma. Quem está certo? Parece importante estarmos preparados para argumentar e defender as nossas idéias com racionalidade. Mas isso não significa que devemos fechar nossos olhos a todos os argumentos em contrário. Devemos, sim, investigá-los e ponderá-los, até mesmo, como vimos, para eventual­mente reconsiderar nossa opinião. Mas o ato de mudar de opinião requer que a nova posição que adotemos seja suficientemente poderosa para explicar de modo convincente as mesmas evidências que tínhamos em nosso caso anterior. Mudar de opinião é algo que deve ocorrer quando a outra argumentação consegue ir mais longe do que a antiga. Assim, uma nova teoria tem que explicar, além das novas evidências, todas as antigas também. 

Inversão
A inversão da interpretação C tentar sustentar o oposto do que a conclusão d
iz C é uma das ótimas técnicas que o pensador crítico deve manter em seu arsenal. Caso essa inversão de interpretação seja sustentável C não raro pelas próprias premissas que sustentam o caso original C então não há base racional para concluir pelo argumento original.

Procurar por mecanismos causais plausíveis
A confusão ou mau estabelecimento de relações de causa e efeito é um ponto que precisa de muita atenção. Um dos importantes princípios que apren­demos com estatística, já men­cionado em um outro capítulo, é a idéia de que “Correlação não implica em causalidade”. Como exem­plo, diversas pesquisas apon­tam para uma melhor situação geral de saúde nas pes­soas que trabalham, quan­do comparadas a pes­soas que não trabalham. Isto é fato, há estatísticas demonstrando esse efeito. É fácil concluir, apressadamente, que trabalhar seria bom para a saúde. Isto seria equivalente a propor um mecanismo causal, ou seja, trabalhar causaria melhor disposição de saúde e é muito fácil propor esta idéia em livros de “auto-ajuda”. Entretanto, para afirmar isso é necessário mais do que uma simples correlação. A forma mais fácil de observar isso é inverter a interpretação: são exatamente as pessoas mais saudáveis que tem condições de ir ao trabalho C ou condições de serem empregadas. [inversão]

Saúde
Um outro caso comum de interpretação errônea tem ligação com as afirmações de que as pessoas que vão à igreja rezar tem melhor saúde. Considerando que haja mesmo essa correlação, é possível observar que, também neste caso, a pessoa precisa estar saudável para ir à igreja rezar. Além disso, há o fator social: a pessoa pode, durante esses eventos, ter um contato humano que a faça estreitar suas ligações com a comunidade local, aumentando o seu círculo de amizades e reduzindo os efeitos do estresse e da depressão por solidão, tão comuns em nossa sociedade. Conversar, sentir se acolhido pela comunidade, receber a atenção de outras pessoas, são todas atividades que afetam positivamente a todos nós. Assim, não é nem a igreja nem o ato de rezar que parecem influenciar diretamente a questão da saúde, mas sim o tipo de socialização saudável que lá ocorre, um procedimento que também pode ser obtido em um clube, uma reunião de amigos, um grupo de estudos, um coral ou um curso de dança.

Dessa forma, todo esse efeito C e a falsa conclu­são causal C não passam de artifício de interpreta­ção de uma correlação, não raro associado a outras mo­tivações. [saúde] O pen­sador crítico precisa estar consciente de que essa ligação pela correlação precisa de mais substanciação para virar uma ligação causal aceitável. Uma forma de procurar obter essa substanciação seria através da elaboração de hipóteses que pudessem explicar parte dessa correlação. Uma forma racional de investigar isso, por exem­plo, seria propor que o sistema imunológico das pessoas se torna mais debilitado quando essas pessoas estão ociosas do que quando estão trabalhando. Mas simplesmente criar essa hipótese nada significa. É preciso, agora, criar experimentos que possam confirmar ou refutar essa hipótese, seguindo a estratégia de investigação científica que mencionamos rapidamente no capítulo 3.

Isto só é obtido com um estudo estatístico mais rigoroso, que consiga estreitar mais o foco da conclusão [aborto].

Aborto
Um estudo recente propôs haver uma correlação entre o número de abortos e o nível de criminalidade dos adultos correspondentes. A hipótese é a de que mulheres que obtêm o direito de interromper sua gravidez ficam livres da situação de terem que criar crianças não desejadas, freqüentemente em um ambiente de privação econômica, o que favoreceria o desenvolvimento de adultos com tendência maior a cometerem crimes violentos. A hipótese, sozinha, não teria substanciação suficiente. Entretanto, um estudo de Adrian Reine e outros estabeleceu um suporte maior para essa hipótese (veja Raine et al. 1994). No estudo, os autores encontraram uma ligação entre a combinação de complicações durante o nascimento e rejeição maternal nessa fase, com o comportamento violento dessas crianças quando se tornaram adultos. As complicações devidas ao nascimento podem provocar danos cerebrais por falta de oxigenação adequada. Mas esse fator, isoladamente, não foi visto associado à maior ocorrência de violência em adultos. A rejeição pela mãe dos bebês em fase inicial da vida também favoreceria a hipótese de adultos problemáti¬cos, mas verificou se que isso também não está ligado, isoladamente, à violência de adultos. Entretanto, a combinação dos dois fatores demonstrou haver uma ligação. De 4.269 partos de bebês masculinos, apenas 4.5% estavam nesse grupo C ou seja, as duas condições presentes, rejeição maternal e parto complicado. Entretanto, esse grupo foi responsável por 18% dos assassinatos, roubos a mão armada, estupros e assaltos. Uma das medidas da rejeição materna que o estudo contabilizou foi a verificação de quais mães gostariam de ter feito aborto. Outro grupo obteve resultados similares, conforme pode ser visto no artigo Theory Ties Abortion to Crime Drop, disponível em:
http://www.washingtonpost.com/wp srv/WPlate/1999-08/10/0421-081099-idx.html
(agradeço mensagem do Dr. John Skoyles do qual extraí algumas dessas informações)

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