Uma Breve História das Cabeças de Cachorro Decepadas

Ken Freedman, publicado em WFMU’s Beware of the Blog
Tradução gentilmente autorizada

Cientistas soviéticos realmente mantiveram viva uma cabeça de cachorro decepada nos anos quarenta? Aqueles Frankensteins Stalinistas enlouquecidos continuaram então para criar um cão de duas cabeças em 1954? (Isto é, se “duas cabeças” for correto – era mais como duas cabeças, seis patas e um torso e meio).

E, esqueça os Soviéticos, o que dizer do cérebro de macaco que um cirurgião de Cleveland transplantou de um primata a outro? Seriam todas essas fraudes da Internet, ou a única evidência conhecida de um tema demasiado tabu para ser levado a sério – a pesquisa em transplantes de cabeça e cérebro que está sendo conduzida há décadas?

Queria ter respostas definitivas para vocês – mas não tenho. Contudo estou mais inclinado a acreditar que estas experiências de fato ocorreram do que quando topei primeiro com esta estranha sub-cultura médica. Depois de começar como um cético, passei a acreditar que organismos certamente foram revividos. Cabeças foram decepadas. Cérebros receberam transfusões. Membros cefálicos foram transplantados. Glicose permeou crânios caninos isolados. Todas essas coisas.

Tudo isso começou há algumas semanas, enquanto navegava pelo arquivos Prelinger. Acabei encontrando o filme Experimentos na Ressuscitação de Organismos, que alega mostrar uma experiência soviética de 1940 em que a cabeça de um cão foi mantida “viva” após ter sido removida de seu corpo. Se você ainda não o viu, tenha cuidado – não é para os sensíveis. E eu também poderia dizer de pronto que sou contrário à remoção e reanimação de cabeças, mesmo que para fins científicos ou culinários. Por mais fascinante que possa ser, ainda é tortura. É uma coisa manter os pulmões de um cão funcionando fora do corpo morto, e uma outra completamente diferente manter a consciência e percepção de dor em uma cabeça decepada. Talvez o horror imaginado disto é o que manteve esta pesquisa relegada ao status de ficção científica e fraudes por tanto tempo.

Mas isso não me impediu de querer descobrir se essa era ou não uma fraude. Quando você lê os comentários na página Prelinger, verá que metade das pessoas que viram o filme acharam que era uma fraude, enquanto metade estava inclinada a acreditar nele. Eu quis descobrir por mim mesmo. Certamente, se esta película fosse uma fraude, seria relativamente fácil demonstrá-lo, isso se alguém já não o tivesse feito. Mas ao invés de descobrir qualquer evidência de fraude, minhas horas de caça levaram a dúzias de trabalhos e sumários médicos que apoiavam o filme, assim como a descoberta de mais casos de experimentação em transplantes de cabeça nos EUA e Rússia, para não mencionar um grupo de cientistas que fariam Mary Shelley orgulhosa.

Primeiro, baixe e assista ao filme, já que o quebra-cabeças começa aí.

À primeira vista, Experimentos na Ressuscitação de Organismos parece uma peça de propaganda soviética da Segunda Guerra Mundial. As artérias e veias de sangue entrando e saindo da cabeça do cão não são visíveis ao espectador, e a narração que acompanha o filme (feita pelo biólogo britânico pró-comunista J.B.S. Haldane) deixa muito a desejar em termos de exatidão médica, de tão simplista que é sua descrição da experiência. O filme supostamente documenta experiências realizadas pelo Dr. S.S. Bryukhonenko no Instituto de Fisiologia e Terapia Experimental na U.R.S.S. Foi lançado em novembro de 1943, quando o Conselho Nacional de Amizade Americano-Soviética e a Sociedade Médica Americano-Soviética o exibiram a mil cientistas americanos na cidade de Nova Iorque. Aqui estão os artigos sobre aquela exibição em 1943 no New York Times (download do pdf) e na revista Time.

E sobre esse sujeito, Bryukhonenko, ele existiu mesmo? A resposta é positiva. Inventou o autojector, a máquina de circulação artificial mostrada no filme, e era uma figura bem conhecida no campo da biologia humana anos 30 e 40. O website do National Institute of Health tem índices de artigos referenciando seu trabalho, incluindo este artigo de 1969 que descreve (em Russo) algo do mesmo trabalho mostrado neste filme. Enquanto eu não pude encontrar nenhum artigo escrito pelo próprio Bryukhonenko, eu também não procurei usando caracteres cirílicos ou fui a uma biblioteca médica para buscar os artigos que são referências no website do National Institute of Health.

Apesar de suas contribuições significativas à ciência e à medicina, Bryukhonenko será recordado eternamente como o doutor da cabeça de cachorro, devido principalmente a sua figuração como a cabeça decepada do professor Dowell no romance de ficção científica de Alexander Beliaev, “A Cabeça do Professor Dowell,” que foi adaptado depois como o filme "O Testamento do Professor Dowell.”

Bryukhonenko não esteve sozinho em seu fascínio em trazer coisas mortas de volta à vida. Como se pode esperar de um país que perdeu seis milhões de pessoas contra os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, a ciência da ressuscitação era algo como uma obsessão científica e médica. O Instituto para Fisiologia e Terapia Experimentais, onde as experiências de Bryukhonenko com cães ocorreram, foi fundado em 1936 por Vladimir Negovsky, um doutor soviético que passou muito dos anos quarenta nas linhas do front da guerra com equipes de ressuscitação, trabalhando para reviver soldados soviéticos que estavam sangrando até a morte, e em alguns casos, já tinham sangrado até a morte. O trabalho de Negovsky anterior à guerra envolveu experiências com cães, e Bryukhonenko era apenas um de muitos cientistas soviéticos trabalhando neste campo.

Em 196
1, Negovsky definiu sua peculiar especialidade científica como “Reanimatologia.” De seu obituário:

“Negovsky foi capaz de desenvolver a reanimatologia como uma nova disciplina médica na União Soviética e treinou e tutorou diversas gerações de “reanimatologistas” nos países comunistas, para quem a anestesiologia, tratamento de emergência fora do hospital e outras práticas clínicas intensivas se transformaram em sub-especialidades da reanimatologia. Cada hospital da Rússia e ex-repúblicas soviéticas tem um Departamento de Reanimatologia comandado em sua maior parte por pessoas treinadas por Negovsky.”

Bryukhonenko também teve seus próprios protégés, mais notavelmente Vladimir Demikhov, que em 1954 supostamente ligou uma segunda cabeça a um cão vivo. Você pode ver clipes de suas experiências aqui. A melhor visão da criatura de Demikhov está no sexto clipe (marcado com o número “005”).

É difícil ultrapassar a estranheza de um cachorro de duas cabeças, mas o cavalheiro ímpar que narra Experimentos na Ressuscitação de Organismos também tem uma história passada bizarra. JBS Haldane era um biólogo e geneticista escocês influente que apostou sua substancial reputação no trabalho de Bryukhonenko. Neste filme, Haldane afirma ter visto estas experiências com seus próprios olhos.

Haldane começou na genética criando cobaias para seu pai cientista e agindo ele mesmo como cobaia de vez em quando. Da entrada sobre Haldane no Stephen Jay Gould Archive:

“Em um episódio de sua infância, o pai de Haldane o fez recitar um longo discurso de Shakespeare nas profundezas de uma mina para demonstrar os efeitos de gases ascendentes. Quando o menino sufocado finalmente caiu no chão, descobriu que poderia respirar o ar lá, uma lição que lhe serviu bem nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Um homem corajoso, de 200 libras, Haldane continuou a tradição familiar de usar seu próprio corpo para testes perigosos. Em uma experiência, bebeu quantidades de ácido hidroclórico para observar seus efeitos na ação dos músculos; outra vez exercitou-se até a exaustão enquanto media a pressão do dióxido de carbono em seus pulmões.” Sua disposição para a auto-experimentação permaneceu. Em suas experiências com câmaras de descompressão, ele e seus voluntários sofreram tímpanos perfurados, mas, como Haldane escreveu em seu livro O que é a vida, “o tímpano geralmente sara; e se um furo permanecer, embora fique um tanto surdo, pode-se soltar fumaça de cigarro pela orelha em questão, o que é uma realização social”.

Haldane era um verdadeiro homem do renascimento; falava muitas línguas, escreveu extensamente sobre história e política, e fez contribuições importantes à química, biologia, matemática e genética. Ele remodelou a biologia evolucionária moderna com seus estudos sobre a genética populacional.  Seu interesse em genética e biologia influenciou seu livro e ensaio de 1924, Daedalus, ou Ciência e o Futuro, que imaginava um dia em que as pessoas controlariam sua própria evolução com a ectogênese – o cuidado e alimentação de bebês de proveta.

Daedalus criou uma grande sensação em 1924, e Bertrand Russell ficou tão impressionado com suas implicações que escreveu seu próprio livro, Ícaro ou o Futuro da Ciência como resposta. Um outro escritor e amigo de Haldane chamado Aldous Huxley também foi inspirado por Daedalus e a resposta de Russell o suficiente para basear seu próprio romance de 1932, Admirável Mundo Novo, nas questões levantadas por Haldane e Russell.

Dez anos antes, Huxley tinha usado seu amigo Haldane como a inspiração para o personagem Shearwater em seu romance Antic Hay (1923), como “o biólogo demasiadamente absorvido em suas experiências para notar seus amigos dormindo com sua esposa.”

Haldane foi um marxista comprometido durante boa parte de sua carreira, que é porque nós o encontramos narrando um filme distribuído pelo Conselho Nacional de Amizade Americano-Soviética. Mas ao fim da Segunda Guerra, Haldane rompeu com o marxismo e mudou-se para a Índia para continuar seus estudos e escritos até sua morte em 1964.

Talvez você esteja pensando que poderia haver algo em todo este negócio de remoção de cabeças lá na U.R.S.S., mas não poderia possivelmente acontecer nos EUA, com sua longa história de práticas médicas em sua maior parte éticas.

Pense de novo.

Nos anos sessenta e setenta, o Dr. David Gilboe da Universidade de Wisconsin removeu os cérebros de mais de quarenta cães, removendo seu sangue para sufocá-los, e revivendo-os em seguida bombeando o sangue de volta, não muito diferente das experiências de Bryukhonenko nos anos trinta e quarenta. Medindo a atividade dos cérebros do cão com um eletroencefalógrafo, Gilboe concluiu que era possível manter os cérebros de cachorro funcionando por aproximadamente duas horas fora do corpo. Ao contrário de Bryukhonenko, Gilboe não estudava a ressuscitação de organismos – ele estudava a química do metabolismo do cérebro durante o processo de sufocação e recuperação. E que maneira melhor de fazer isso que removendo dúzias de cérebros de cachorro. Um artigo de Gilboe foi publicado em abril de 1973 no The Journal of Biological Chemistry, e um pdf dele pode ser baixado aqui, ou você pode ver um sumário do artigo como uma página web aqui.

Um índice de um artigo de 1964 por Gilboe e outros dois cientistas intitulado “Perfusão extracorpórea da Cabeça de Cão Isolada” pode ser visto aqui, mas você precisará se registrar para ler o índice.

Gilboe permaneceu fiel à tradição soviética de remoção de cabeça de cachorros, mas um outro cientista do meio-oeste americano começou com cães e passou então para o próximo degrau evolucionário. Nos anos sessenta um neurocirurgião de Cleveland chamado Robert J White juntou um cérebro de cachorro isolado a um segundo cachorro para ver se poderia ter alguma ação do cérebro recentemente desabrigado. A experiência foi um sucesso, se você considerar um cão com dois cérebros funcionando um “sucesso,” como White o fêz. Mas esta experiência foi meramente um aquecimento para a experiência mais notória de White, na qual ele transplantou a cabeça de um macaco para o corpo de outro macaco. Quando a cabeça de macaco recentemente incorporada tentou morder o dedo de um pesquisador, diz-se que a equipe inteira de White vibrou. Você pode ver o índice desta experiência, intitulado “Transplante de Troca Cefálica no Macaco” aqui.

White estava a mil, e tudo estava pronto para tentar o conceito no Homo Sapiens, quando algo ou alguém entrou em ação e pôs fim a tudo. Mas não antes que ele de algum modo tivesse mexido com alguns cérebros humanos:

“Nós descobrimos que você pode manter um cérebro humano vivo sem nenhuma circulação,” disse ele. “Está morto para todos
fins práticos — por mais de uma hora — e então você o traz de volta à vida. Se você quer algo que é um tanto ficção científica, então, camarada, só pode ser isto!

Talvez seja por isto que White foi indicado mais tarde como um conselheiro para o Comitê em Bioética do Papa João Paulo II. Talvez o Papa não soubesse de Craig Vetovitz, um ciclista paralisado amigo de White que espera pacientemente que o doutor remova sua cabeça a ligue a um corpo funcionando. Ou talvez o Papa soubesse de tudo isso, e é por isso que ele está no comitê. Todo fica muito confuso. Você pode ler mais sobre White aqui.

Talvez histórias como esta sejam a razão porque o transplante de cabeça e cérebro não é tomado a sério. Assim que você chega ao cenário de pessoas escolhendo corpos de outras pessoas para carregar suas cabeças por aí, fica um pouco difícil parar de rir. Mas não é nada engraçado para alguns. (E não, eu não estou me referindo a Walt Disney, cuja cabeça, ao contrário da crença popular, nunca foi congelada esperando um corpo e dias melhores.)

Há uma companhia por aí chamada Brain Trans para a qual este é um negócio sério. Temo que não possa lhe dizer onde a Brain Trans está, porque a natureza de seu trabalho viola várias leis éticas e médicas, algumas das quais ainda são honradas internacionalmente. Mas eu posso dizer-lhe que estão em algum lugar na Ásia, que têm muitos cérebros congelados, e que têm uma variedade ainda maior de corpos humanos. Visite sua galeria de corpos!

Mas não faça perguntas demais. Como dizem em seu site, “Por causa dos aspectos éticos nós não discutimos como e onde conseguimos novos corpos humanos para o transplante de cérebro. (sic)”

Não leva muito tempo para perceber que o site Brain Trans é um dos mais engraçados, ainda que as finalidades fraudulentas para o qual foi criado sejam verdadeiras. E são sites como Brain Trans, e as lendas urbanas como aquela sobre o cérebro de Walt Disney e as dúzias de livros e filmes de ficção científica sobre cabeças decepadas vivas que mantiveram a ciência do transplante de cérebro e cabeça bem afastados no reino do boato e ficção. Contanto que o horror de tal pesquisa supere nosso fascínio por ela, as versões legítimas de companhias como a Brain Trans nunca se tornarão reais e o transplante de cérebro será outra sub-especialidade médica reservada aos cachorros.

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6 comentários sobre “Uma Breve História das Cabeças de Cachorro Decepadas

  1. Cara nao sei se fui eu que li o trabalho um pouco rapido mas ele nao responde se é ou nao verdadeiro o video sendo é algo surreal confesso que nao conseguir terminar de ver é muito chocante. descobri o site vendo sua entrevista no Jo Soares e é muito bom parabens pelo trabalho

  2. O vídeo é muito forte ao mostrar o cão naquele estado, entretanto, minha duvida surge ao ver a cabeça do animal. Os reflexos sensorias surpreendem, no entanto, me pergunto como o cão consegue reagir a martelada proximo dele movendo a cabeça ligeiramente se os musculos eretores do pescoço não existem mais, não ha inverção nem tampouco tendão ligando musculo a osso para o ocorrer o sistema de alavanca que posteriormente movimentaria a cabeça. Apos refletir sobre esta causa concluir ser de origem duvidosa o video…

  3. Este vídeo, como o Anderson e Agar comentaram acima, provavelmente é falso. O que não quer dizer que a experiência o seja. Provavelmente devem ter conseguido algum resultado modesto nos estudos, e enfeitaram um pouco para tentar impressionar.

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