Era a Bruxa Malvada uma Astronauta?

Kentaro Mori
 
Interpretando Ezequiel… e a Branca de Neve

Você acorda e vai lavar o rosto. O detalhe é que o ano é 2015 e o espelho do banheiro não é um mero espelho, mas uma sofisticada interface de sua casa inteligente: em outras palavras, além de mostrar seu reflexo o espelho pode exibir informações sobre a previsão do tempo, as condições do trânsito ou se você for uma mulher, quem sabe possa não resistir e perguntar "Espelho, espelho meu, há alguém neste mundo mais bela do que eu?". Ele não deixará de responder que é você, não esquecendo que é um espelho inteligente.
O espelho como interface de um computador integrado em sua casa não é mera fantasia, é um conceito de tecnologia sério sobre meios futuros mais amigáveis e intuitivos de interação homem-máquina (ou sexismos à parte, mulher-máquina). A referência à história da Branca de Neve e o espelho encantado é apenas brincadeira, mas revela que um elemento de conto de fadas criado há séculos pode logo vir a ser parte concreta de nossa vida diária.
Poucas pessoas pensarão que o espelho encantado da bruxa malvada realmente existiu, que a possível concretização de algo descrito magicamente revela que a história contém detalhes práticos e até mesmo técnicos sobre como uma boa interface de computadores deveria se parecer. Se alguém levar isto a sério, depois de dar uma boa risada da cara da pessoa, você pode ainda apontar como o espelho encantado desempenha diversos papéis simbólicos na história da Branca de Neve, como sua função principal era atestar a beleza da bruxa e que isto seria feito de forma não tão boa por, digamos, um cabide encantado.
O espelho encantado não é o único elemento de conto de fada que pode ser visto de forma tecnológica. Em um texto anterior (A Lâmpada Mágica), o mecanismo de ativação da lâmpada mágica de Aladim foi examinado; e se formos levar isto adiante até mesmo A Bela Adormecida parece falar de toda uma cidade colocada em estase: diz-se que eles adormeceram, mas como não envelheceram seu estado seria melhor comparado a uma conservação criogênica, ou uma hibernação. Algo que desconfiamos que seja possível algum dia, se apenas tivermos a tecnologia suficiente.
É muito fácil perceber a falha e o ridículo evidente em tomar como reais os contos de fadas apenas porque a tecnologia parece poder reproduzir seus elementos encantados. Infelizmente o mesmo não ocorre com escrituras religiosas. Elas foram levadas ao pé da letra por milênios e ainda hoje há os que acreditam piamente que contêm verdades absolutas. Mesmo aqueles que reconhecem seus absurdos e contradições evidentes eventualmente acham que de alguma forma a Bíblia, por exemplo, deve ser mais concreta que a Branca de Neve. Isto pode ser verdade até certo ponto. Contudo decorreria daí que se é ridículo levar a sério o espelho encantado, as visões de Ezequiel que parecem descrever contatos com espaçonaves podem ser levadas a sério?
A Visão de Ezequiel
Nada melhor que uma olhada mais profunda para o tema, simplesmente rir da cara da pessoa encarando escrituras religiosas como relatando contatos com ETs pode não ser suficiente nem intelectualmente válido. Comecemos com um texto saído diretamente do Antigo Testamento da Bíblia, Ezequiel. Se você tem um exemplar do livro mais impresso na história da Humanidade com você, pode conferir por si mesmo, e não se surpreenda se sua versão for um pouco diferente da que apresentarei [1]. 
Pois bem, voltemos a Ezequiel, e voltemos a aproximadamente 2.600 anos atrás quando os hebreus haviam sido subjugados pelo rei babilônico Nabucodonossor. Provavelmente no exílio, o profeta Ezequiel teve uma visão de Deus impressionante, ainda mais impressionante que o normal para visões religiosas porque como vimos muitos a entendem como um avistamento de OVNI antes de Cristo, incluindo uma descrição de um veículo avançado e um contato com seu(s) tripulante(s):

"Eu [Ezequiel] vi o seguinte: Do lado norte soprava um forte vento. Foi então que eu vi uma grande nuvem e um turbilhão de fogo. Havia claridade em torno da nuvem e, no centro, um brilho faiscante, bem no meio do fogo. Do meio da nuvem surgiu algo parecido com quatro animais, e cada um lembrava também uma forma humana. Cada um tinha quatro rostos e quatro asas. Suas pernas eram retas e seus cascos pareciam cascos de boi, só que eram brilhantes como bronze polido. (…) No meio dos animais havia uma coisa parecida com brasas acesas, queimando como tocha. Esse fogo se movia entre os quatro animais, era brilhante, e dele saíam relâmpagos. (…) Observando, vi uma roda no chão, ao lado de cada um dos quatro animais. No aspecto e estrutura, as rodas tinham o brilho do topázio. O formato de uma era o formato das quatro; o aspecto e estrutura delas eram como se uma roda estivesse no meio da outra. Rodavam para os quatro lados sem precisar virar. O aro delas era muito grande e estava cheio de olhos por toda a volta. E isso, nas quatro rodas. (…) Por cima da cabeça dos animais havia uma coisa parecida com uma cúpula de cristal brilhante, estendida por cima da cabeça dos animais. Sob a cúpula, suas asas ficavam voltadas uma para a outra, e cada animal tinha suas asas cobrindo-lhe o corpo. O barulho de suas asas, que eu escutei, parecia o estrondo de águas torrenciais, como a voz do Todo-poderoso. (…) Ouviu-se um barulho. Por cima da cúpula que ficava sobre as cabeças dos animais havia algo parecido com uma pedra de safira, em forma de trono; e nele, bem no alto, algo parecido com um ser humano. Vi em volta dele uma coisa como brilho faiscante, parecendo fogo, bem junto dele. Daquilo que parecia ser a cintura para cima, e também para baixo, havia algo brilhante como fogo, em toda a volta. Esse brilho em torno dele parecia o arco-íris, que aparece nas nuvens em dia de chuva. Era a aparência visível da glória de Javé. Quando vi, caí imediatamente com o rosto no chão, e ouvi a voz de alguém que falava comigo". – Ezequiel, (1:4-28)

Depois de já ter sido introduzida a idéia de que o trecho descreve um contato com uma espaçonave, e como algumas passagens mais estranhas foram convenientemente omitidas (ainda que nada tenha sido modificado), é realmente tentador imaginar que Ezequiel viu uma espaçonave descendo a terra e que tentou, com suas palavras e conceitos, descrevê-la da melhor forma que podia.
Sem surpresa, o maior divulgador de tal interpretação foi Erich von Däniken, em seu best-seller mundial ‘Eram os Deuses Astronautas?‘ (Chariots of the Gods, 1968). Depois de ler o livro, um projetista aposentado da NASA, Josef Blumrich, teria sido levado a dar uma segunda olhada no Antigo Testamento e segundo ele o que inicialmente pretendia ser uma visão descrente terminou por ver descrições técnicas em detalhe de uma avançada espaçonave.
Blumrich logo publicou um livro, The Spaceships of Ezekiel (1973), onde dá forma às descrições de Ezequiel como seria de se esperar que um ex-projetista da NASA pudesse fazer. [2] Os "pés direitos" seriam molas hidráulicas. A "roda no meio da outra" que vem mistificando muitos por milênios seriam rodas compostas de segmentos independentes que permitiriam movimentações para todas as direções, inclusive em ângulo reto (algo que ajudaria
muitas pessoas a estacionar o carro). As asas dos "quatro animais" seriam rotores, que controlariam e ao mesmo tempo aproveitariam a descida, e assim por diante. Ezequiel teria visto uma espaçonave que combinava tanto elementos para uma viagem a reação no vácuo do espaço quanto rotores para viajar pela atmosfera do planeta e mesmo rodas especiais para locomoção em terra.
Contatos Inusitados
Tudo muito convincente? Bem, se parece convincente talvez fosse bom perguntar, com o perdão do trocadilho, o que diabos o Javé nessa suposta espaçonave disse a Ezequiel. Ainda com o Antigo Testamento em mãos você pode conferir que Javé disse e fez muitas coisas ao profeta Ezequiel depois de sua impressionante chegada. Aqui vai uma seleção de algumas passagens curiosas, por assim dizer [3]:

"Então notei que certa mão se estendia para mim com um rolo de pergaminho. A mão desenrolou o pergaminho diante de mim: estava escrito por dentro e por fora, e o que nele estava escrito eram lamentações, gemidos e gritos de dor. Ele me disse: "Criatura humana, coma isso; coma esse rolo, e depois vá levar a mensagem para a casa de Israel". Então eu abri a boca e ele me deu o rolo para comer. E continuou: "Criatura humana, que seu estômago e sua barriga se saciem com este rolo escrito que estou lhe dando". Eu comi e pareceu doce como mel para o meu paladar." (Ezequiel, 2:9-3:3)

Isso mesmo. Deus, Javé ou como supõem, o alienígena, dá um pergaminho a Ezequiel e manda que ele o coma. E tem gosto de mel.

"As broas de cevada que você comer, serão assadas sobre fezes humanas, à vista de todos". E Javé completou: "É dessa forma que a casa de Israel comerá alimento impuro no meio das nações por onde eu a espalhei". Então eu disse: "Ah! Senhor Javé, eu nunca me contaminei! Desde pequeno, jamais comi carne de animal morto de morte natural ou estraçalhado por alguma fera. Até agora, carne estragada nunca entrou em minha boca!" Javé me respondeu: "Está bem. Para assar seu pão deixo que você use estrume de vaca no lugar de fezes humanas". (Ezequiel, 4:12-15)

É de admirar a benevolência do alienígena.

"Criatura humana, de repente, eu vou tirar de você aquela que é o encanto dos seus olhos. Não vista luto, nem se lamente, nem derrame lágrimas. Gema em silêncio, e não siga os costumes do velório. Use turbante, calce sandálias, não cubra a barba e não aceite pão dos vizinhos". (Ezequiel, 24:16-17)

Depois de ordená-lo a todo tipo de excentricidades, o alien ainda mata a mulher do profeta e diz para que Ezequiel não se lamente. Absurdo? Mas há uma explicação. A explicação é que Ezequiel não encontrou um alienígena. A visão de Ezequiel é religiosa, mística, simbólica, e entendê-la como descrevendo um contato com tecnologia avançada apenas quando é conveniente é esquecer todo o resto do livro, e mesmo o contexto em que foi escrito.
Todo o sentido do livro de Ezequiel pode ser resumido em "Eles (Israel) ficarão sabendo que eu sou Javé, o Deus deles" (28:26; 29:16; 34:30; 39:22-28). Os judeus haviam sido subjugados pela Babilônia, e Ezequiel como um líder exilado diz que Javé é o senhor de seu povo, profetizando que todas nações à volta irão sofrer graves conseqüências de seus pecados. Os masoquismos a que o profeta se submete têm como objetivo ilustrar a miséria pela qual Israel irá passar.
Voltando à visão
Todos os aspectos sendo interpretados como elementos tecnológicos na visão de Ezequiel são na verdade parte da iconografia religiosa da época, e portanto plenamente explicáveis de forma convencional. [4] A aparência humana ou humanóide, as quatro faces de animais e asas, os pés retos (pernas retas, pés direitos) que são cascos de boi. Tudo no que parece ser uma plataforma sustentando Javé. Ao lado você confere um artefato do antigo oriente que se não é uma combinação perfeita, tem em comum boa parte do que Ezequiel descreve em sua visão.
Pode-se pensar que essa iconografia deriva de Ezequiel. Entretanto, tais elementos são anteriores ou contemporâneos ao profeta, e não provém de uma só cultura. Pode-se pensar então que Ezequiel foi apenas um dos que viu extraterrestres descendo em espaçonaves, mas de fato cada um dos elementos descritos por Ezequiel também é exibido de forma isolada e em contextos muito diferentes em outras peças.
A conclusão plausível a que se chega, compatível com o que sabemos sobre o antigo oriente e mais do que isso, com o que sabemos sobre Ezequiel, é que sua visão é um amálgama de diferentes elementos religiosos atrelados a diferentes culturas e simbologias, tudo com um objetivo muito definido e pragmático: estabelecer Javé como deus dos hebreus. É o Antigo Testamento. É a Bíblia.
Era a Bruxa Malvada uma astronauta?
Certamente, pode-se elaborar respostas aos argumentos expostos aqui. Pode-se dizer que os absurdos no livro de Ezequiel são fruto de distorções e adições posteriores. De fato, o livro de Ezequiel é um tanto problemático. Neste caso contudo, o que impede tais distorções e adições posteriores de não contaminar a própria e tão prezada visão? Desconsiderar apenas o que não lhe convém não é um meio muito honesto de analisar uma questão.
Uma resposta criativa pode ser imaginar que Ezequiel viu uma máquina do tempo. Um elemento curioso desta abordagem é dizer que o hebraico é uma das línguas que menos se alterou ao longo dos milênios, logo se algum viajante do futuro quisesse ir ao passado e ser minimamente entendido, bem poderia falar em hebraico aos hebreus. É curioso, mas é improvável que alguém que possa viajar no tempo tenha muita dificuldade em aprender qualquer língua, de qualquer época. Se faltar tempo para a tarefa, bem, está-se em uma máquina do tempo!
Ezequiel pode ter visto uma espaçonave alienígena assim como a Branca de Neve pode contar uma história real. Se dizer isso é o mesmo que dizer que o livro de Ezequiel é pura fantasia no sentido físico, bem, há um modo diferente de ver a questão. Não estamos aqui demolindo a fascinação verdadeira que pode existir em imaginar que seres extraterrestres nos visitaram no passado.
O que temos aqui é a reafirmação de que vivemos em uma época fantástica, onde os avanços da ciência permitem que nossas especulações tecnológicas tornem plausível o que há menos de três milênios era tão maravilhoso que só podia remeter aos poderes onipotentes de Deus.

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Notas
[1] O texto completo de Ezequiel no Antigo Testamento que utilizei neste texto pode ser visto aqui
[2] Uma olhada crédula como a de Blumrich, mas que leva a especulação tecnológica ainda mais adiante: Ezechiel-Faehre (em alemão)
[3] Essas passagens foram tomadas tendo como guia a Skeptic’s Annotated Bible.
[4] Uma página aqui em CA sobre a questão: Notas sobre a Visão de Ezequiel

Em uma nota final, é bom dizer que as visões de Ezequiel não são usadas apenas para defender que fomos visitados por ETs. Há uma longa história associando Ezequiel a diversas questões como a Guerra Fria, o destino da civilização ocidental e o Oriente Médio. É um prato cheio para aqueles dispostos a usar a imaginação.
E, em uma exibição do poder simbólico das palavras de Ezequiel, o presidente americano George W. Bush provavelmente estava se referin
do ao profeta (e à Bíblia) quando terminou seu primeiro discurso como presidente em janeiro de 2001 com a seguinte frase:
"E um anjo ainda está no Turbilhão e dirige a tempestade" (And an angel still rides in the Whirlwind and directs the storm)"

2 comentários sobre “Era a Bruxa Malvada uma Astronauta?

  1. Texto lindo !
    Já vi essa teoriaem um outro site, mas apresentada sobre a forma de vídeos, mostrando pinturas de outras culturas e relatos e outras religiões.
    Um dos exemplos são as pirâmides egípcias, formadas por blocos gigantes de várias toneladas, até hoje n se sabe como conseguiram empilhá-las.
    Muito menos como conseguiram fazer ilustrações complexas em seus interiores devido a falta de luz, n sabiam administrar eletricidade. O fogo por falta de oxigênio n resistia tb.
    Usar espelhos para iluminar a pirâmide com luz solar tb n dava pois a cada espelho colocado, uma parte da luz se perdia…
    Mas encontraram ilustrações de pequenos objetos estranhos em forma de flores emanando luz, ainda n se sabe oq são.

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