Metamorphosis
- por Ricardo Bittencourt, publicado no newsletter 700km, n.78
O local onde trabalho está cheio de pessoas geniais, porém completamente doidas. Um dos meus amigos é maestro e está atualmente trabalhando com música microtonal. Para quem não sabe, a música tradicional baseia-se em dividir cada oitava em 12 semitons de espaçamento uniforme (logaritmicamente falando). Já a música microtonal não segue esse padrão e pode ter quantos semitons forem do agrado do autor, sendo que o espaçamento nem precisa ser uniforme.
O trabalho desse meu amigo é na construção de instrumentos microtonais sintéticos. Outro dia ele fez uma música onde a maioria das notas eram semifusas, pegando dessa maneira apenas o ataque dos instrumentos. O resultado final é um conjunto de clicks e ruídos estranhos que podem apenas ser comparados à uma sinfonia !kung, se uma sinfonia !kung existisse.
Pois outro amigo meu, que é brilhante em física e capaz de citar a equação de Schroedinger com a mesma naturalidade que eu cito uma história do Batman, ouviu a tal música microtonal e soltou esse incrível comentário construtivo: "Bah! Isso não é música."
Isso me deixou pensativo. Afinal, quem estava certo, o maestro ao afirmar que aquilo era música, ou o físico que dizia que não era música? Para solucionar o problema eu teria que voltar à definição do que é música.
Uma definição que já me falaram é "qualquer seqüência de sons que tenha melodia, harmonia e ritmo". Segundo essa definição, aquela música microtonal não era música mesmo. Mas, segundo essa mesma definição, rap também não é (afinal rap é uma sigla que significa apenas ritmo e poesia). Para mim, deixar rap de fora é restritivo demais, a solução seria buscar outra definição para música.
Mas será que é possível achar uma definição perfeita? Um dos trabalhos mais famosos do belga Rene Magritte é uma tela chamada "A traição das imagens", onde ele pintou um cachimbo, e embaixo escreveu "ceci n’est pas une pipe" (isso não é um cachimbo). Se você parar para pensar, não é mesmo. É apenas uma pintura de um cachimbo.
A mesma conclusão pode ser tirada de uma escultura de um cachimbo onde você escreve embaixo "isso não é um cachimbo" (pois seria apenas uma escultura de um cachimbo). Se você tivesse um replicador molecular que copia o cachimbo molécula a molécula, e colocasse a tal frase embaixo da réplica, ainda assim a mesma conclusão pode ser tirada (pois se trata apenas de uma cópia de um cachimbo).
Mas e se você colocasse a inscrição debaixo de um cachimbo de verdade? Será que o cachimbo deixa de ser cachimbo? Passa a ser um enfeite? Uma obra de arte? Um não-cachimbo? Ou não muda nada?
Para responder a essas perguntas, seria preciso que criássemos uma ciência que vai além do estudo dos objetos, e que tratasse do estudo das definições dos objetos. Largaríamos a ciência objética para estudarmos a ciência meta-objética.
Esse é um problema que foi muito estudado pelos matemáticos nos últimos 150 anos. Pelos idos de 1880, Georg Cantor criou a teoria dos conjuntos, onde definia-se intuitivamente "conjunto" como uma coleção de itens. Quaisquer itens. Inclusive conjuntos. Você poderia, por exemplo, criar um conjunto que contivesse todos os conjuntos de dois elementos, ou então um conjunto de todos os conjuntos cujos elementos começam com a letra "A".
Mas isso leva a um problema: o que acontece quando você cria o conjunto de todos os conjuntos que não contém a si mesmo? (vamos chamar esse conjunto de [C] para simplificar). Olhando para o próprio umbigo, se [C] não contém a si mesmo, então contém a si mesmo por definição. E se [C] contém a si mesmo, então não contém a si mesmo como conseqüência, levando a um paradoxo!
Em 1910, Bertrand Russell e Alfred North publicaram o livro "Principia Mathematica", onde mostram ao mundo sua criação: a teoria dos tipos. Segundo essa teoria, conjuntos de tipo-1 podem conter apenas elementos que não são conjuntos. Conjuntos que contém outros conjuntos são de tipo-2. Conjuntos que contém conjuntos que contém conjuntos são de tipo-3, e assim por diante, recursivamente.
Como conjuntos de tipos diferentes não se misturam, o paradoxo estava resolvido. O conjunto [C] simplesmente não pode ser criado segundo essa teoria, pois teria que ser ao mesmo tempo de tipos 1 e 2 (e isso é proibido).
Tudo estaria bem, se não fosse por um trabalho publicado por Kurt Gödel em 1931. Esse trabalho cria um método que ficou conhecido como "godelização", que consiste em exprimir sentenças de tipo-2 através de seqüências de sentenças de tipo-1. Dessa maneira, ele mostra que o "Principia Mathematica" é capaz de criar uma frase do tipo "Essa sentença é falsa" (que implicitamente funde os tipos-1 e tipos-2 em uma única coisa paradóxica).
Estando o "Principia Mathematica" com uma inconsistência embutida, os matemáticos teriam agora que abandonar a teoria dos tipos e achar uma outra teoria que eliminasse os paradoxos da matemática. Porém o teorema que Godel demonstrou prova que qualquer teoria que possa ser bolada está sujeita à godelização. Ou seja, não adianta tentar tapar o buraco, pois as únicas ferramentas que você tem são peneiras!
Esse balde de água fria do Gödel mostra que qualquer tentativa de criar uma meta-ciência fatalmente resulta em algo que é inconsistente, ou então incompleto. Dessa forma, buscar definições absolutamente perfeitas para qualquer coisa é perda de tempo, e tudo que posso considerar é que ambos os meus amigos estavam certos.
Como curiosidade final, Gödel ao fim de sua vida estava completamente obcecado com a qualidade da comida que ingeria. Se não fosse tudo absolutamente puro e preparado de maneira completamente higiênica ele não comia. Ou seja, apesar de genial, era completamente doido.
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“Para responder a essas perguntas, seria preciso que criássemos uma ciência que vai além do estudo dos objetos, e que tratasse do estudo das definições dos objetos. Largaríamos a ciência objética para estudarmos a ciência meta-objética.”
Essa ciencia já existe e se chama Semiótica.
Por sinal esse texto é um excelente ensaio de semiótica.