O Paradoxo de Banach-Tarski

Volker Runde, publicado em Pi in the Sky, n.2
Ou O que a Matemática e os Milagres têm em Comum

E ele, ao desembarcar, viu uma grande multidão; e, compadecendo-se dela, curou os seus enfermos. Chegada a tarde, aproximaram-se dele os discípulos, dizendo: O lugar é deserto, e a hora é já passada; despede as multidões, para que vão às aldeias, e comprem o que comer. Jesus, porém, lhes disse: Não precisam ir embora; dai-lhes vós de comer. Então eles lhe disseram: Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes. E ele disse: trazei-mos aqui. Tendo mandado às multidões que se reclinassem sobre a relva, tomou os cinco pães e os dois peixes e, erguendo os olhos ao céu, os abençoou; e partindo os pães, deu-os aos discípulos, e os discípulos às multidões. Todos comeram e se fartaram; e dos pedaços que sobejaram levantaram doze cestos cheios. Ora, os que comeram foram cerca de cinco mil homens, além de mulheres e crianças. – Mateus 14:14-21

Por que um artigo que deveria ser sobre matemática começa com a alimentação dos cinco mil?
Nos anos vinte dois matemáticos poloneses – Stephan Banach e Alfred Tarski – provaram um teorema matemático que soa muito como a alimentação de cinco mil. Em sua honra, ele é chamado paradoxo de Banach-Tarski*. As conseqüências do paradoxo de Banach-Tarski são, por exemplo:

Uma laranja pode ser cortada em um número finito de pedaços, e esses pedaços podem então ser juntados novamente para formar duas laranjas, cada uma tendo o mesmo tamanho da que foi cortada em pedaços.

Outra conseqüência, ainda mais bizarra, é:

Uma ervilha pode ser cortada em um número finito de pedaços, e esses pedaços podem então ser reagrupados para formar uma bola sólida com um diâmetro maior do que a distância da Terra ao Sol.

Mais geralmente, sempre que você tiver um corpo tridimensional (com algumas restrições), você pode obter qualquer outro corpo ao quebrar o primeiro em pedaços e reagrupar as partes. Transformar cinco pães e dois peixes em comida suficiente para alimentar uma multidão de mais de cinco mil pessoas parece então um exercício simples.
Se você leu até aqui, sua atitude presumivelmente é uma das duas:

  • Sua crença na verdade absoluta dos teoremas matemáticos é tão forte que faz com que engula o paradoxo de Banach-Tarski.

  • Você é um cético tão vigoroso, e assim nem toma a alimentação dos cinco mil nem o paradoxo de Banach-Tarski de forma literal.

Se você cai na primeira categoria, provavelmente há pouco incentivo para que continue lendo este artigo. Do contrário, acho que sua atitude é melhor descrita da seguinte forma: Você pode acreditar na estória da alimentação dos cinco mil mas não tomá-la literalmente, e se você ouve falar de um teorema matemático cujas conseqüências são obviamente absurdas, você tende a achar que o teorema está errado.

Pegue uma laranja e uma faca afiada. Corte a laranja em pedaços e tente formar com os pedaços dois globos com aproximadamente o mesmo tamanho. Se os pedaços forem suficientemente pequenos, cada um desses globos será razoavelmente parecido com uma bola, mas é claro, cada uma com um volume que é mais ou menos a metade da laranja original. Talvez você não tenha cortado a laranja do jeito certo. Você pode tentar sua sorte com centenas de laranjas: acabará produzindo toneladas de bagaço, mas nenhuma corroboração do paradoxo de Banach-Tarski. Isso não parece mostrar que o paradoxo Banach-Tarski está errado?

O paradoxo de Banach-Tarski é um teorema que chamamos de teorema de existência: há uma forma de dividir uma ervilha de forma que os pedaços possam ser reagrupados em, digamos, uma estátua em tamanho natural de Stefan Banach. O fato de você não conseguir encontrar tal forma não significa que ela não existe – você pode simplesmente não tê-la encontrado ainda. Deixe-me clarificar com um exemplo de aritmética elementar. Um inteiro positivo p é chamado primo se 1 e p são seus únicos divisores; por exemplo, 2, 3 e 23 são primos, enquanto 4 = 2.2 e 243 = 3.81 não são. Os gregos antigos sabiam que todos inteiros positivos têm uma fatorização em primos: se n é um inteiro positivo, então há números primos p1,…..,pk de forma que n = p1….pk. Para um n pequeno, tal fatorização em primos é fácil de encontrar: 6 = 2.3, 243 = 2.3.3.3.3 e 6785 = 5.23.59, por exemplo. Há essencialmente apenas um jeito de encontrar uma fatorização em primos – tentando. Achar a fatorização de 6785 – armado apenas com lápis e papel – deve ter tomado certo tempo. Agora pense em um número grande, digo, realmente grande:

7380563434803675764348389657688547618099805.

Esse é um número positivo sem nenhum problema, e o teorema diz a você que ele tem uma fatorização em primos, mas – por favor! – não gaste horas, dias ou mesmo anos de sua vida tentando achá-la. Você deve pensar: para que os computadores foram inventados? É fácil escrever um pequeno programa que produz a fatorização em primos de um inteiro positivo arbitrário (e ele pode mesmo produzir uma de 7380563434803675764348389657688547618099805 em um período de tempo razoável). Contudo, o tempo médio que tal programa levaria para achar a fatorização de um inteiro n aumenta dramaticamente à medida que n fica maior: para um n suficientemente grande, o tempo que até o mais rápido supercomputador disponível hoje levaria – em média – para achar a fatorização em primos de n seria maior que a idade do universo.

Assim, embora a fatorização em primos de um inteiro positivo sempre exista, ela pode ser impossivelmente difícil de encontrar. De fato, isto é algo bom – é o coração dos códigos de chaves públicas que tornam as transações de cartão de crédito na internet seguras, por exemplo. Agora, pense de novo no paradoxo de Banach-Tarski. Apenas porque você não pôde fazê-lo funcionar na sua cozinha (assim como você não pôde encontrar a fatorização de um certo inteiro muito grande) isso não significa que o teorema é falso (ou que esse inteiro particular não tenha uma fatorização em primos).

Vamos tentar refutar o paradoxo de Banach-Tarski com a única ferramenta que funciona em matemática: pensamento puro. O que faz o paradoxo de Banach-Tarski desafiar o senso comum é que, aparentemente, o volume de algo aumenta do nada. Você certamente conhece um certo número de fórmulas para calcular os volumes de certos corpos tridimensionais. Por exemplo, se C é um cubo cujas arestas têm o comprimento l, então o volume V (C) é l3; se B é uma bola com raio r, então seu volume V (B) é 4/3¶r3.

Mas qual é o volume de um corpo tridimensional arbitrário? Não importa como o volume de um corpo concreto é calculado, o seguinte é certamente verdade sobre o volume de corpos tridimensionais arbitrários:

– Se o corpo ~B é obtido do corpo B simplesmente movendo o corpo B no espaço tridimensional, então V (~B) = V (B);

– Se B1, . . . ,Bn são corpos no espaço tridimensional, então o volume de sua união é menor ou igual à soma de seus volumes, i.e.,

– Se B1, … , Bn são corpos no espaço tridimensional de forma que nenhum deles possui um ponto em comum, então o volume de sua união é igual à soma de seus volumes, i.e.;

Assim, digamos que B sej
a um corpo tridimensional arbitrário, e digamos que B1, … , Bn sejam subconjuntos de B de forma que nenhum deles tenha qualquer ponto em comum e B = B1 U … U Bn.

Agora, mova cada Bj no espaço tridimensional, e obtenha ~B1, … , ~Bn. Finalmente, reúna ~Bj novamente e obtenha outro corpo ~B = ~B1 U … U ~Bn. Agora nós temos para os volumes de B e ~B:


Isto significa que o volume de ~B deve ser menor ou igual ao volume de B – não pode ser maior. Banach e Tarski estavam errados! Será mesmo?

Nossa refutação de Banach-Tarski parece perfeita. Tudo de que precisamos foram três propriedades básicas do volume de corpos tridimensionais. Mas isso era tudo? Por trás de nosso argumento, havia uma suposição oculta – todo corpo tridimensional tem um volume. Se nós deixarmos esta suposição, nosso argumento subitamente colapsa. Se apenas um dos corpos Bj não tem volume, toda nossa cadeia de (in)equações não faz mais sentido. Mas por que um corpo tridimensional não deveria ter volume? Isso não é óbvio? O que é de fato verdade é que todo pedaço de laranja que você pode possivelmente produzir com uma faca tem um volume. Por esta razão, você nunca será capaz de usar o paradoxo de Banach-Tarski para reduzir seus gastos com alimentação. Uma conseqüência do paradoxo de Banach-Tarski é portanto que há um jeito de cortar uma laranja para que você possa formar, digamos, uma abóbora gigante com os pedaços – mas você nunca será capaz de fazer isso por si mesmo usando uma faca. Que tipo de lógica bizarra pode fazer alguém aceitar isso?

Talvez você esteja querendo ficar a par do axioma de escolha:

Se você tem uma família de conjuntos não-vazios S, então há uma forma de escolher um elemento x de cada conjunto S nessa família.

Isso soa plausível, não? Apenas pense em um número finito de conjuntos não-vazios S1,…Sn: Pegue x1 de S1, e então prossiga para S2, e finalmente pegue xn de Sn. O que o axioma da escolha tem a ver com o paradoxo de Banach-Tarski? Como se revela, muita coisa: Se o axioma da escolha é verdadeiro, então o paradoxo de Banach-Tarski pode ser derivado dele e, em particular, deve haver corpos tridimensionais sem volume. Assim, a resposta à questão de se o paradoxo de Banach-Tarski é verdadeiro depende se o axioma da escolha é verdadeiro.

Certamente, o axioma da escolha funciona para um número finito de conjuntos não-vazios S1,…,Sn. Agora pense em uma seqüência infinita S1, S2,… de conjuntos não-vazios. Novamente, pegue x1 de S1, então x2 de S2, e apenas continue. Você nunca chegará a um fim, mas eventualmente produzirá um elemento xn de cada Sn. Assim, o axioma da escolha é verdade neste caso também. Mas e se tivermos uma família verdadeiramente arbitrária de conjuntos? E se tivéssemos de lidar com a família de todos subconjuntos não-vazios da linha real? Pode ser mostrado que esta família de conjuntos não pode ser escrita como uma seqüência de conjuntos. Como escolhemos um número real de cada conjunto? Não há um algoritmo que nos permita pegar um elemento de um conjunto, um segundo elemento de outro conjunto e, eventualmente, de pegar um elemento de cada conjunto na família. Mesmo assim, o axioma da escolha ainda parece plausível – cada conjunto S em nossa família é não-vazio e portanto contém algum elemento x – por que não deveria existir um jeito de escolher um elemento particular de cada tal conjunto?

Por outro lado, aceitar o axioma da escolha implica em fenômenos estranhos como o paradoxo de Banach-Tarski. Se o axioma da escolha é verdade, então devemos aceitar a misteriosa duplicação de laranjas. Se é falso, então por quê? Por favor, não tente provar ou refutar o axioma da escolha – você não conseguirá fazer qualquer uma das coisas. O axioma da escolha está além de prova ou refutação. Nós podemos supor que é verdadeiro, ou podemos supor que é falso. Em outras palavras, nós precisamos acreditar nele ou deixá-lo de lado. A maioria dos matemáticos hoje em dia acreditam no axioma da escolha por uma simples razão – com o axioma de escolha, eles podem provar teoremas úteis, a maioria dos quais é muito menos surpreendente que o paradoxo de Banach-Tarski.

Você está desapontado? Ao invés de elevar a alimentação dos cinco mil de um assunto de fé a uma conseqüência de um irrefutável teorema matemático, o paradoxo de Banach-Tarski exige que você aceite outro assunto de fé – o axioma da escolha – antes que possa aceitar o teorema. No final das contas, o paradoxo de Banach-Tarski não está assim tão distante da alimentação dos cinco mil…

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* O teorema é provado no artigo: S. Banach and A. Tarski, Sur la décomposition des ensembles de points en parts respectivement congruents. Fund. Math. 6 (1924), 244-277.

9 comentários sobre “O Paradoxo de Banach-Tarski

  1. “Se nós deixarmos esta suposição, nosso argumento subitamente colapsa”. Isto está errado, O sistema de inequações é uma soma, portanto, um 0 como volume não iria mudar absolutamente nada…

  2. É INCRÍVEL COMO NÃO SE CONSEGUE DISTINGUIR O “MUNDO DAS IDÉIAS” DO “MUNDO DA CONCRETUDE”. ISTO SERIA ACEITÁVEL PELO SENSO COMUM, MAS JAMAIS PELA CIENTIFICIDADE. NÃO SE PODE DAR REALIDADE A UMA METÁFORA. O PARADOXO DE BANACH-TARSKI É VÁLIDO PARA AS INFINIDADES ABSTRATAS DA MATEMÁTICA, NÃO PARA O MUNDO CONCRETO. É PRECISO SABER QUE A REALIDADE É DUAL.

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