Entrevista com o historiador brasileiro Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos

Por Diego Zuniga, publicado em “El Ojo Crítico” Nro. 94, março de 2022. Páginas 90-93. Tradução e reprodução autorizada.

Exemplo do tipo de publicações feitas pela revista O Cruzeiro, com grandes ilustrações.

Aficcionado do tema OVNI desde cedo e hoje Doutor em História, Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos escreveu um livro vital para entender o desenvolvimento do fenômeno no Brasil. Esse livro já está disponível em espanhol.

Como tantos aficcionados pelo tema OVNI, Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos começou sua jornada no mundo dos não identificados ainda jovem e, por seus vinte anos, ingressou no grupo Organização de Pesquisas Ufológicas, de São Paulo (Brasil). Lá realizou pesquisas de campo com seus colegas e também inúmeros trabalhos teóricos (incluindo sobre o avistamento de Kenneth Arnold, o caso Varginha e até resenhas de filmes) que aos poucos foram demonstrando o interesse do jovem ufólogo pela história, cenário no qual Rodolpho posteriormente desenvolveu profissionalmente.

Juventude, ó juventude. À esquerda, Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos. Ao seu lado, o autor da entrevista, durante um encontro que ocorreu em maio de 2004 em Santiago do Chile.

Graças ao fato de ter estudado por algum tempo na Argentina, Gauthier fala um espanhol perfeito. Parte de seu trabalho acadêmico e de pesquisa atual – é Doutor em História e professor do Instituto Federal de Minas Gerais – está relacionado justamente à história argentina, campo no qual escreveu e publicou um livro sobre o Justicialismo e o visão deste projeto político. Antes, porém, aproveitava suas imersões bibliográficas para buscar mais do que líderes e presidentes. Na verdade, ele se dedicou a caçar notícias de OVNIs.

Em 2009 obteve o grau de mestre em História graças à dissertação “A invenção dos discos voadores. Guerra Fria, imprensa e ciência no Brasil (1947-1958)”, onde analisa os primeiros anos após o surgimento do fenômeno nos Estados Unidos e seu avanço pelo Brasil, onde a imprensa teve papel fundamental em sua divulgação. Também analisa o papel das instituições militares e científicas na hora de confrontar o mistério que envolvia os discos voadores, reconstruindo -através de uma análise equilibrada- os primeiros momentos da ufologia brasileira, também graças a entrevistas com alguns dos protagonistas daqueles anos.

Publicado em 2016 em português pela Alameda Casa Editorial, o livro foi traduzido para o espanhol em 2021 por Ediciones Coliseo Sentosa. Afastado dos OVNIs há algum tempo, Cardoso dos Santos conversou conosco sobre a publicação de sua obra em nossa língua, e principalmente sobre os primeiros anos do fenômeno OVNI, aspecto que ainda lhe parece central para compreender os desdobramentos posteriores do assunto.

“Muitos esquecem o contexto social e político em que surgiram as ideias ufológicas”

Por que você achou necessário reconstruir os primeiros anos da história dos discos voadores no Brasil?

Bom, quando eu era jovem e lia as revistas ufológicas brasileiras, elas narravam a evolução dos casos ao longo do tempo de forma muito organizada e com certa linearidade. Mas quando se lê os jornais antigos, logo se percebe que as coisas eram muito mais complicadas. Pareceu-me que havia algo curioso. O termo “disco voador”, por exemplo, não era na década de 1950 sinônimo de nave interplanetária, pois havia uma forte discussão e medo em relação às novas armas das superpotências da Guerra Fria. Além disso, quase ninguém usava o termo “OVNI”. Achei muito fascinante porque muitos esquecem o contexto social e político em que surgiram as primeiras ideias ufológicas.

Capa da edição em português do livro de Cardoso dos Santos.

Ao longo do livro, fica muito clara a influência dos Estados Unidos nos primeiros anos do fenômeno. Uma ufologia brasileira seria possível sem Roswell e Donald Keyhoe, por exemplo?

Sem Roswell, sim, teria sido possível. Li pouquíssimas notas relacionadas a esse caso, e todas eram de 1947. A influência do caso Roswell na década de 1950 no Brasil foi quase nula. Houve outros casos que tiveram mais impacto. Keyhoe era muito mais importante. Seus artigos foram traduzidos muito cedo no Brasil (1952) e influenciaram muito a discussão. Embora seja preciso dizer que uma de suas principais teses, a do acobertamento da verdade alienígena pelos governos, curiosamente teve pouca adesão no Brasil nos primeiros anos. Os militares brasileiros quase nunca foram acusados ??de ocultar informações. Isso porque militares contribuíram e validaram alguns casos famosos, como o da Barra da Tijuca.

O papel da imprensa é vital no desenvolvimento da questão dos OVNIs. No caso do Brasil, O Cruzeiro, Manchete, Ciência Popular e outras publicações têm papel central. Essas revistas apenas reportaran os fatos ou também se tornaram geradoras de casos?

As revistas ilustradas eram personagens centrais porque, em um país muito grande e com muitos analfabetos, chegavam a cantos onde muitas vezes não havia jornais. A enorme atenção que alguns deram ao assunto, especialmente O Cruzeiro, ajudou a gerar casos. É difícil dizer exatamente o mecanismo pelo qual isso ocorreu. Talvez as pessoas tenham se sentido mais livres para falar sobre um episódio estranho quando algo semelhante apareceu em revistas. Ou, ao contrário, você pode ter considerado um avistamento estranho depois de ler detalhes semelhantes nesses jornais. Assim, intencionalmente ou não, as revistas acabaram promovendo novos casos.

Há justamente um jornalista de O Cruzeiro que desempenha um papel de destaque. Refiro-me a João Martins, que parece ser um personagem central na divulgação das histórias de discos voadores naqueles primeiros anos. Você acha que sua importância em nível ufológico foi subestimada no Brasil?

João Martins foi provavelmente a figura mais importante do mundo ufológico brasileiro nos anos cinquenta. Como você diz, ele foi jornalista da revista mais influente da época (O Cruzeiro) e publicou muito sobre isso. Considerando as devidas proporções e contextos, ele era como o Donald Keyhoe do Brasil. Por muitas décadas a comunidade ufológica no Brasil reconheceu seu papel e extensa produção. Mas, a partir da década de 1980, começou a haver, digamos, um certo desconforto. Isso tem a ver com novas análises técnicas que mostraram que as fotos na Barra da Tijuca de 1952 eram fraudes. Este caso foi amplamente discutido em todo o mundo e João Martins, juntamente com o fotógrafo Ed Keffel, foram as duas únicas testemunhas. Na década de noventa, alguns ufólogos já aceitavam que, em suas palavras, “a ufologia brasileira começou com um caso em que houve fraude”. É por isso que, nos anos seguintes, a importância histórica de João Martins tem sido continuamente esquecida. Na minha opinião, isso aconteceu intencionalmente para evitar, digamos, esse constrangimento.

Durante a pesquisa para o seu livro, houve alguma descoberta surpresa, algum caso clássico que acabou sendo fraudulento que o chocou?

As duas descobertas que mais me impactaram foram em relação a dois casos famosos: Villas Boas e Trindade. O caso Villas Boas (1957) é mundialmente famoso e às vezes é considerado a primeira abdução, muito antes de esse termo ser cunhado. Basicamente, este fazendeiro disse que encontrou uma nave, foi forçado a entrar e fez sexo consensual com uma alienígena loira. O que descobri é que na mesma semana em que esses supostos fatos ocorreram, a revista O Cruzeiro publicou depoimentos muito semelhantes de sequestros e encontros com alienígenas loiros. Ou seja, parece-me possível que a testemunha tenha sido, de alguma forma, influenciada, conscientemente ou não, pelo que leu e pelo que viu nas ilustrações daquela revista. Sobre o caso Trindade (1958), descobri nos arquivos um antigo relato do fotógrafo (Almiro Baraúna) responsável pelas famosas imagens. Nesse material, publicado anos antes (1954) das fotos de Trindade, ele ensinava precisamente como tirar fotos fraudulentas de discos voadores. Recentemente, membros de sua família disseram publicamente que ele confessou em particular que as fotos de Trindade eram falsas.

Pode-se pensar que os ufólogos esconderam esses dados de propósito, para manter o mistério?

Não encontrei evidências de que os ufólogos da época tenham retido dados propositalmente. O que me parece é que o desejo de acreditar muitas vezes é tão grande que impede que o que muitas vezes não é tão difícil de perceber seja percebido. Um exemplo é a enorme quantia de dinheiro que Baraúna ganhou com as fotos de Trindade, algo que ele mesmo admitiu e até revelou os valores aos ufólogos. Esses dados deveriam ter gerado pelo menos alguma desconfiança, mas isso não aconteceu. Há 15 ou 20 anos o caso de Trindade era considerado um dos dez mais sérios e importantes da ufologia mundial.

Capa da edição em espanhol, publicada em 2021.

Os discos voadores surgem em um momento histórico muito particular: a ascensão da ciência, as viagens espaciais, o pós-guerra, a ficção científica… Poderiam ter surgido em outro contexto histórico?

Essa é uma pergunta difícil para um historiador responder porque é impossível não cair na especulação. Parece-me que o conjunto de ideias sobre discos voadores até hoje tem muito a ver com aquele momento histórico muito particular do mundo ocidental. Se todo esse contexto não existisse, parece difícil pensar que as coisas teriam acontecido como as conhecemos. Provavelmente seria algo muito diferente. De qualquer forma, parece-me que, na medida em que os seres humanos começaram a explorar o espaço, era inevitável pensar que outros seres também poderiam nos visitar. Talvez as naves não fossem discos ou coisas assim, mas ainda haveria filmes e literatura sobre isso.

Rodolpho Cardoso dos Santos junto à edição em espanhol de seu livro.

Quão importante tem sido o papel dos ufólogos na divulgação da iconografia OVNI? Pergunto porque o livro atinge justamente o surgimento dos adeptos do assunto e apenas esboça sua importância no desenvolvimento posterior.

Bem, eles foram muito importantes, sem dúvida. O que noto no Brasil é que, no final da década de 1950, os fãs deixaram de simplesmente consumir o que lhes chegava por meio de revistas e passaram a se organizar em grupos com boletins e pesquisas realizadas com recursos financeiros próprios. Isso muda um pouco as coisas, pois a partir daquele momento muitas vezes as revistas publicarão casos que, pela primeira vez, foram encontrados e investigados por ufólogos. Em outras palavras, os ufólogos passaram a alimentar a iconografia com esses casos tanto por meio de seus boletins quanto pelo que aparecia em revistas de grande circulação onde havia ilustradores profissionais. O que se vê é que havia uma relação muito próxima entre setores da imprensa e alguns dos ufólogos, o que lhes abriu as portas para um público muito mais amplo do que o das conferências sobre discos voadores. Foi um relacionamento lucrativo para ambos. Os discos voadores significavam um aumento nas vendas de periódicos. Por outro lado, os ufólogos tiveram a oportunidade de quebrar, ainda que momentaneamente, a bolha da comunidade ufológica e alcançar outros leitores. Esse relacionamento ajudou a atualizar e reciclar continuamente a iconografia OVNI.


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