De Volta ao Gênesis
Publicado em The Guardian
É uma presunção depois do fato enxergar a evolução dirigida a algum ponto final particular, como nós mesmos. Uma andorinha com interesse em história, compreensivelmente orgulhosa do vôo como evidentemente a maior realização da vida, poderia considerar a espécie das andorinhas – essas máquinas voadoras espetaculares com suas asas voltadas para trás, que ficam no ar durante um ano inteiro e até mesmo copulam em vôo livre – como o ápice do progresso evolutivo. Se elefantes pudessem escrever história eles poderiam retratar antas, musaranhos-elefante, focas-elefante e macacos probóscides [NT: todos animais com espécies de trombas] como candidatos novatos ao longo da estrada no tronco principal da evolução, dando seus primeiros passos desajeitados, mas cada um deles – por alguma razão – nunca tendo sucesso completo: tão próximos, mas tão longe. Astrônomos elefantes poderiam desejar saber se, em algum outro mundo, existiriam formas de vida alienígenas que cruzaram o rubicão nasal e deram o pulo final à proboscitude plena.
Nós não somos nem andorinhas nem elefantes, nós somos pessoas. Enquanto vagamos em imaginação por alguma era geológica morta há muito, é humanamente natural reservar um afeto e curiosidade especiais a espécies, do contrário ordinárias, que naquela paisagem antiga sejam nossas antepassadas (é estranhamente pouco familiar o pensamento de que sempre há uma espécie que seja nossa ancestral). É difícil negar nossa tentação humana de ver essa espécie como "na linha principal" da evolução, as outras como um elenco coadjuvante, de passagem, com aparições figurantes. Sem sucumbir a esse erro, há um modo de indulgir em um humanocentrismo legítimo e respeitando o decoro histórico. Esse modo é refazer nossa história de trás para frente.
O Conto do Antepassado [The Ancestor’s Tale] se passa na forma de uma peregrinação épica do presente para o passado. Todas as estradas conduzem à origem de vida. Mas porque nós somos humanos, o caminho que nós seguiremos será uma peregrinação humana para descobrir os antepassados humanos. No caminho, cumprimentaremos outros peregrinos que se unem a nós em uma série de pontos de encontro, à medida que encontramos o antepassado comum que compartilhamos com cada um deles.
Os primeiros peregrinos companheiros que nós cumprimentamos, uns cinco milhões de anos atrás, nas profundezas da África onde Stanley memoravelmente apertou as mãos de Livingstone, são os chimpanzés. Um milhão de anos a mais no passado, os gorilas se juntam a nós, e então os orangotangos. Logo os gibões, então os macacos… e assim por diante até que nós cumprimentamos finalmente as bactérias, depois dos que todos os peregrinos marcham junto em uma única busca pela origem da própria vida, o "Canterbury" da vida.
Seguindo a trilha de Chaucer, meus peregrinos, que são todas as espécies diferentes de criaturas vivas, têm a oportunidade de contar histórias ao longo do caminho. São estas histórias que formam a substância principal do livro. A história do Dodo, na página 6, é apenas uma delas. O Retorno do Anfitrião [The Host’s Return] (parte da qual segue) resume o que eu aprendi durante o curso da peregrinação.
O anfitrião cordial de Chaucer, tendo guiado os peregrinos de Londres para Canterbury e permanecido impresario a suas histórias, se virou e os conduziu diretamente de volta a Londres. Se eu, tendo feito a peregrinação de quatro bilhões de anos ao alvorecer da vida, retorno agora ao presente, devo estar só, porque presumir que a evolução seguiria o mesmo caminho rumo ao futuro duas vezes seria negar a razão de nossa viagem ao passado. A evolução nunca esteve dirigida a um fim particular.
E no entanto se, para emprestar uma experiência imaginária do biólogo americano Stuart Kauffman, a evolução pudesse ser refeita várias vezes – talvez em uma amostra imaginária de planetas como a Terra – quão semelhantes seriam os resultados?
Como qualquer zoologista, eu posso procurar por meu banco de dados mental da vida neste planeta e chegar a uma resposta calculada para perguntas da forma: "Quantas vezes X evoluiu independentemente?". "O" olho evoluiu mais de 40 vezes, em nove "designs" diferentes. Ecolocalização – o truque de emitir pulsos de som e navegar pela cronometragem precisa dos ecos – evoluiu pelo menos quatro vezes: em morcegos, baleias dentadas, guacharos e swiftlets de caverna. Não tantas vezes quanto a contagem do olho de 40-60, mas ainda com freqüência o bastante para nos fazer suspeitar que, se as condições forem certas, o sonar evoluirá.
Fazer as contas mais sistematicamente daria um bom projeto de pesquisa. Que sistemas evoluíram muitas vezes de forma independente, como os olhos? Ou "várias vezes", como a ecolocalização? Algumas coisas só evoluíram uma vez, ou nunca? Eu suspeito que nós acharíamos determinados caminhos evolutivos potenciais pelos quais a vida está "ansiosa" para trilhar. Outros caminhos têm mais "resistência".
Em outro lugar eu desenvolvi a analogia de um museu enorme de toda a vida, tanto real quanto concebível, com corredores se espalhando em muitas dimensões para representar a mudança evolutiva, real e concebível. O corredor dos olhos está amplamente aberto, quase acenando. Outros corredores são bloqueados por barreiras que são difíceis ou até mesmo impossíveis de ultrapassar. A evolução repetidamente caminha pelos corredores fáceis e apenas ocasionalmente, e inesperadamente, salta uma das barreiras difíceis.
A picada venenosa (injetando veneno hipodermicamente por um tubo de ponta afiada) evoluiu independentemente pelo menos 10 vezes: na água-viva e seus parentes, em aranhas, escorpiões, centopéias, insetos, moluscos (conchas em cone), cobras, o grupo do tubarão (raias), peixes ósseos (stonefish), mamíferos (o ornitorrinco macho) e plantas (urtigas que picam). É uma boa aposta a de que o veneno, incluindo injeção hipodérmica, evoluiria em reprises.
A produção de som para fins sociais evoluiu independentemente em pássaros, mamíferos, grilos e gafanhotos, cigarras, peixes e rãs. Eletrolocalização, o uso de campos elétricos fracos para navegação, evoluiu várias vezes em peixes e o ornitorrinco de bico de pato. Assim como o – provavelmente subseqüente – uso de correntes elétricas como arma. A física da eletricidade é a mesma em todos os mundos e nós poderíamos apostar com algo de confiança na evolução repetida de criaturas que exploram a eletricidade para fins de navegação e ataque.
Vôo verdadeiro, com bater de asas, oposto ao vôo livre passivo ou por pára-quedismo, evoluiu quatro vezes: em insetos, pterodátilos, morcegos e pássaros. Pára-quedismo e planagem de vários tipos evoluíram muitas vezes, talvez centenas de vezes independentes, e podem ser um precursor evolutivo para o vôo verdadeiro. Exemplos incluem lagartos, rãs, cobras, peixes "voadores", lulas, colugos, marsupiais e roedores (duas vezes). Eu poria muito dinheiro em planadores surgindo em reprises hipotéticas da evolução, e uma soma razoável em voadores verdadeiros batendo asas.
Propulsão a jato pode ter evoluído duas vezes. Moluscos cefalópodes fazem isto, em grande velocidade no caso de lulas. O outro exemplo em que posso pensar também é um molusco, mas não é de alta velocidade. Vieiras vivem principalmente no fundo de mar, mas ocasionalmente nadam. Elas abrem e fecham suas duas conchas ritmicamente, como um par de castanholas estalando. Você pensaria que isto as impeliria "para trás" em uma direção
oposta ao estalar. Na realidade, elas se movem "adiante", como se mordendo seu caminho na água. Como isto pode acontecer? A resposta é que os movimentos estalando bombeiam água por um par de aberturas atrás da dobradiça. Estes dois jatos impelem o animal "adiante". O efeito é tão contra-intuitivo que é quase cômico.
Mas e sobre coisas que só evoluíram uma vez, ou nenhuma? A roda, com um eixo verdadeiro, girando livremente, parece só ter evoluído uma vez, em bactérias, antes de ser finalmente inventada na tecnologia humana. A linguagem também evoluiu aparentemente apenas em nós: isto quer dizer pelo menos 40 vezes menos que o olho. É surpreendentemente difícil pensar em "boas idéias" que só evoluíram uma vez.
Eu propus o desafio a meu colega de Oxford, o entomologista e naturalista George McGavin, e ele propôs uma boa lista, mas ainda uma lista curta comparada com a lista de coisas que evoluíram muitas vezes. Besouros bombardeiros do gênero Brachinus são únicos na experiência do Dr McGavin ao misturar substâncias químicas para criar uma explosão. Os ingredientes são feitos e conservados em glândulas (obviamente!) separadas. Quando o perigo os ameaça, eles são esguichados em uma câmara perto do fim posterior do besouro, onde eles explodem, forçando para fora um líquido nocivo (cáustico e fervente) através de um bocal dirigido ao inimigo. O caso é bem conhecido por criacionistas, que o adoram. Eles pensam que é evidentemente impossível evoluir através de passos graduais porque as fases intermediárias iriam todas explodir. O que eles não entendem é que a reação explosiva requer um catalisador: aumente gradualmente a dose do catalisador, e você aumenta gradualmente a explosão, do nada ao letal.
O próximo na lista de McGavin é o peixe arqueiro, que pode ser único ao atirar um projétil para derrubar sua presa à distância. Ele vai à superfície da água e cuspe um bocado em um inseto empoleirado, derrubando-o na água onde ele o come. O outro possível candidato para um predador "nocauteador" poderia ser uma formiga-leão. Formigas-leão são larvas de inseto da ordem Neuroptera. Como muitas larvas, não se parecem nada com seus adultos. Com suas mandíbulas enormes, seriam uma boa escolha para um filme de terror. Cada formiga-leão espreita na areia, imediatamente abaixo da superfície na base de uma armadilha cônica que ela cava para si mesma. Ela cava sacudindo a areia vigorosamente para fora do centro – isto causa deslizamentos de terra em miniatura nos lados da cova, e as leis da física fazem o resto, moldando lindamente o cone. As presas, normalmente formigas, caem na cova e deslizam pelos lados íngremes até as mandíbulas da formiga-leão. O possível ponto de semelhança com o peixe arqueiro é que a presa não cai apenas passivamente. Elas são às vezes derrubadas na cova pelas partículas de areia. Elas não são, porém, apontadas com a precisão do cuspe de um peixe arqueiro, que é guiado com precisão devastadora por olhos que focalizam binocularmente.
Aranhas cuspidoras, da família Scytodidae, são novamente um pouco diferentes. Sem a velocidade de uma aranha-lobo ou a rede de uma aranha de teias, a aranha cuspidora atira uma cola venenosa em sua presa a alguma distância, prendendo-a ao chão até que a aranha chegue e a morda até a morte. Isto é diferente da técnica do peixe arqueiro de derrubar a presa. Vários animais, as najas cuspidoras de veneno por exemplo, cospem defensivamente, não para caçar. A aranha bolas, Mastophora, é novamente diferente, e provavelmente outro caso sem igual. Poderia ser dito que lança um míssil na presa (mariposas, atraídas pelo falso cheiro sexual de uma mariposa fêmea, que a aranha sintetiza). Mas o míssil, uma gota de seda, está preso a uma linha de seda que a aranha gira ao redor como um laço (ou bola) e puxa de volta.
O próximo candidato de McGavin para um caso evolutivo único é uma beleza. É a aranha do sino de mergulho, Argyroneta aquatica. Esta aranha vive e caça completamente debaixo da água mas, como golfinhos, dugongs, tartarugas, caracóis de água doce e outros animais terrestres que retornaram à água, precisa respirar ar. Ao contrário de todos esses outros exilados, a Argyroneta constrói seu próprio sino de mergulho. Ela o tece de seda (seda é a solução universal para qualquer problema aracnídeo) fixada a uma planta subaquática. A aranha vai para a superfície coletar ar, que carrega da mesma maneira como alguns insetos aquáticos, em uma camada apanhada por pêlos no corpo. Mas ao contrário deles, que apenas carregam o ar como um cilindro de mergulhador onde quer que vão, a aranha o leva a seu sino de mergulho, onde o descarrega para criar uma provisão. A aranha senta no sino de mergulho esperando a presa, e armazena e come a presa lá, uma vez que a pega.
Mas o exemplo campeão de George McGavin de um caso singular é a larva de uma mutuca africana chamada Tabanus. De maneira previsível na África, as poças d’água nas quais as larvas vivem e se alimentam secam. Cada larva se enterra na lama e se transforma em pupa. A mosca adulta emerge da lama seca e voa para se alimentar de sangue, finalmente completando o ciclo botando ovos em poças d’água quando as chuvas retornam. A larva enterrada é vulnerável a um perigo previsível. Enquanto a lama seca, ela racha, e há o risco de que uma rachadura surgirá justo no refúgio da larva. Ela poderia teoricamente se salvar se pudesse criar de alguma maneira um modo para qualquer rachadura que chegasse perto fosse desviada para o redor. E ela de fato faz isso de uma maneira verdadeiramente maravilhosa e provavelmente sem igual. Antes de se enterrar em sua própria câmara de pupação, ela primeiro se enterra como um parafuso na lama em uma espiral. Ela então volta à superfície em uma espiral oposta. Finalmente, mergulha diretamente na lama exatamente no centro das duas espirais, e esse é seu local de repouso pelos tempos ruins até que a água retorne.
Agora, você vê o que isto significa? A larva está abrigada em um cilindro de lama cujo limite circular foi enfraquecido previamente pela escavação espiral. Isto significa que quando uma rachadura serpenteia pela lama secante, se ela atinge a extremidade da coluna cilíndrica, em vez cortar através do meio ela segue um caminho de contorno curvado ao redor da extremidade do cilindro, e a larva é poupada. É bem parecido com as perfurações ao redor de um selo que impedem você rasgue o selo no meio. O Dr McGavin acredita que este truque engenhoso é literalmente único a este gênero de mutuca.
Este tipo de exercício comparativo, contando quais coisas evoluem freqüentemente, e quais raramente, poderia nos ajudar a predizer coisas sobre vida fora deste planeta. Quais características da vida são paroquiais, e quais são universais? Esta é uma pergunta que os biólogos fazem com menos freqüência que deveriam.
Se, como um anfitrião retornando, eu reflito sobre toda esta peregrinação, minha maior reação é de assombro. Assombro com a composição extravagante de detalhe que nós vimos; assombro, também, ao próprio fato de que quaisquer destes detalhes simplesmente existe, em algum planeta. O universo poderia ter permanecido tão facilmente inanimado e simples – só física e química, o pó espalhado da explosão cósmica que deu origem ao tempo e espaço. O fato de que a vida evoluiu de quase nada, uns 10 bilhões anos depois que o universo evoluiu de literalmente nada, é um fato tão surpreendente que eu estaria louco ao tentar palavras que lhe fizessem justiça. Nem sequer isso é o fim do assunto. Não apenas a evolução aconteceu: ele conduziu eventualmente a seres capazes de compreender o processo, e até mesmo de compreender o processo pelo qual eles o compreendem.
Esta peregrinação foi uma viagem, não só no sentido literal mas no sentido de contra-cultura que encontrei quando era um jovem na Califórnia nos anos sessenta. O alucinóge
no mais potente à venda em Haight ou Ashbury ou Telegraph Avenue seria fraco em comparação. Se é assombro que você quer, o mundo real está cheio. Não só é a vida neste planeta maravilhosa e profundamente satisfatória para todos aqueles cujos sensos não foram entorpecidos pela familiaridade. O próprio fato de que nós evoluímos o poder cerebral para entender nossa gênese evolutiva redobra o assombro e aumenta a satisfação.
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